quinta-feira, 1 de maio de 2025

O DIA EM QUE OS PORTÕES SE ABRIRAM (Sadrak Alves)

O sol nascia quando comecei a me preparar. A trilha, enfim, parecia prestes a se abrir, sem portões fechados, mas com o coração ainda inquieto. Será que agora vai? Me  aprontei, conferi o horário diversas vezes, ajeitei a mochila e fiquei pronto muito antes da hora. Faltava apenas a Nave da Trilha, fiquei aguardando por um longo período e nada dela chegar. A cabeça a mil. E o calor. Ah, esse sim era um desafio enorme. Mas, de repente, surge uma aprendiz também que, junto comigo, também não sabia muito bem o caminho. Mas, pelo menos, estávamos juntos. 

Mas, assim que estávamos prestes a descer, um cheiro forte tomou conta. Por um instante, achei que alguém tivesse liberado o "Gás do Submundo" dentro da nave, mas era só um "sopro do submundo". Um cheiro que desafiava até os narizes mais corajosos.

Por um momento, o "sopro do submundo" parecia querer se entocar no nosso olfato para sempre. Mas, à medida que os minutos passavam, aquele cheiro persistente começou a se misturar com o ambiente. Talvez já tivesse começado a fazer parte do cenário, ou quem sabe, nós apenas nos acostumamos com ele, como se o corpo tivesse decidido não lutar contra o inevitável. E, com o tempo, não sei se o cheiro foi embora ou se nós é que já não notávamos mais.

Lá encontramos outros aprendizes e, juntos, esperamos a abertura dos portões. Enquanto isso, observávamos as crianças que passavam, brincavam ou apenas nos olhavam de volta. Seus olhares curiosos pareciam perguntar quem éramos. E nós também éramos curiosos — dois mundos se espiando em silêncio, tentando se decifrar.

Enfim, chegou o grande momento. O Guardião da Trilha apareceu com passos calmos e voz firme. Com poucas palavras, nos apresentou os caminhos, como quem desenha um mapa vivo. E então veio a pergunta, como um chamado:  — Vamos descobrir com qual grupo cada aprendiz irá caminhar?

Antes que o silêncio tomasse conta, eu e minha companheira trocamos um olhar e dissemos quase ao mesmo tempo:  — Queremos o Vale dos Primeiros Saberes!

Minha companheira de missão, a Aprendiz do Passo Sábio — curiosa, incansável e pronta pra tudo. Não poderia haver dupla melhor. 

Logo fomos apresentados às guardiãs daquele espaço. A primeira  que, mais à frente, vocês entenderão por que passo a chamar de Guardião do Compasso, nos recebeu com serenidade e uma presença marcante. Ao seu lado, estava sua aliada, a auxiliar, que irradiava um cuidado silencioso, daqueles que não precisam de muitas palavras para se fazer notar. Talvez um dia eu encontre o nome certo para ela.

Assim que a porta se abriu, uma criança correu e sem hesitar, abraçou a Aprendiz do Passo Sábio. Um gesto repentino, cheio de afeto, que nos pegou de surpresa. Mas antes que a emoção tomasse conta do momento, a Guardiã do Compasso lançou uma frase enigmática: — Depois você vai conhecer bem essa criança…

E com isso, deixou um de ar mistério. Como se dissesse: "nem tudo será revelado agora". Fomos apresentados ao grupo. Explicaram quem éramos. E então, nos acomodamos em um cantinho da sala. As crianças nos observavam em silêncio. Não perguntaram nada. Nenhum aceno, nenhum sussurro.

Aquilo me intrigou. Uma quietude tão intensa.. Mas os olhos delas, esses não escondiam nada. Havia curiosidade, vontade de saber, talvez até de se aproximar. E nós? Respeitamos. Porque em trilhas como essa, o silêncio também fala. E cada passo precisa nascer no tempo certo.

Com calma e olhos de quem sabe decifrar mapas invisíveis, ela a Guardiã do compasso nos mostrou cada cantinho daquele território. Explicou, por exemplo, que os pontos mais distantes das extremidades das cadeiras eram ocupados por guardiões especialmente atentos às pistas. Disse que ali ficavam os mais curiosos, os que adoravam trocar segredos, sussurrar descobertas e, às vezes, atrapalhar o silêncio da escuta. 

De repente, no meio do silêncio, algo aconteceu. Era ele, o mesmo que, no início, abraçou a Aprendiz do Passo Sábio. Eu o chamaria de Guardião do Redemoinho. Sem aviso, deixou seu posto e escalou a Torre de Observação da Guardiã do Compasso, como quem já sabia o caminho. De lá, olhou o mundo.

Talvez buscasse pistas. Talvez só quisesse ver mais longe. A Guardiã percebeu e, com voz entre séria e divertida, perguntou: — O que você está fazendo na minha cadeira?
E ele, firme: — Tô olhando.
— Olha que audácia! — ela respondeu, sorrindo por trás da autoridade.

Logo depois, um novo gesto: uma mão pequena, uma tesoura, um papel que ganhava forma. Silêncio criativo. A Guardiã se aproxima: — Quer que eu guarde... ou tome?. Rapidamente aquela mão delicada e agora ágio resolveu guardar. 

O tempo parecia escorrer devagar. Nenhum dos guardiões do tesouro vinha até mim. Até que uma daquelas curiosas, que parece que o mundo inteiro cabe nos olhos, se aproximou devagar. Com a ponta dos dedos, ela tocou meus cachos e sussurrou: "Me dá esses cachos pra mim?" Nem deu tempo de responder: ela correu, desconfiada, de volta ao seu lugar. 

Depois, a guardiã do compasso tentou iniciar uma atividade. Logo, um toque ecoou alto, e com ele os gritos: "Uhul!" Mas a voz da guardiã do compasso fez tudo silenciar: -Vocês se comportaram? Por que estão assim?. Com um tempo chega o momento do lanche e depois intervalo.

E quando voltamos, ganhei meu primeiro abraço. Suado, molhado… mas tão sincero que me fez sorrir de verdade. As crianças começaram a se aproximar. Tio, qual é o seu nome? — Sadrak. — Posso te chamar de Saki? — Pode sim. — Posso mostrar o que sei fazer?. E sem esperar resposta, ele se lança numa cambalhota. Meu coração quase pulou junto.

As luzes da sala foram apagadas. E os guardiões do tesouro abaixaram a cabeça. E aí, um novo lado da guardiã do compasso apareceu. A mesma que tantas vezes foi firme, agora caminhava entre elas com mãos delicadas, acariciando uma a uma. Até que um dos guardiãos do tesouro diz: — Tia, falta eu. — Tem certeza? — Falta eu. 

E então ela cede, e faz o carinho tão esperado. Se era real ou se era só vontade de mais um pouquinho de afeto, não sei. Mas era bonito de ver. Depois, uma nova travessia. A Guardiã do Compasso dizia com firmeza: — Eles precisam aprender a decifrar os sinais, registrar com suas próprias mãos. Falar não basta.E completava, olhando para trás no tempo: Foi assim que me ensinaram. É assim que deve ser.

E, mesmo que eu pense diferente, não posso negar: as crianças sabiam muito. Elas estavam acostumadas com aquele ritmo. E ainda que aquele compasso não seja o meu, os passos delas eram firmes, surpreendentes e traziam resultados.  Logo, começaram a me chamar: Tio, me ajuda aqui! — um, dois, três… quando vi, estava cercado. O tempo passou. O dia se foi. A gente se despediu, agradeceu, e partimos rumo à nossa Nave da Trilha, agora ainda mais lotada. Mas quem se importa com espaço quando se volta cheio de histórias?

Ao longo dessa trilha, compreendi que às vezes, é no silêncio de quem observa, com olhos de quem escuta, que se encontra o verdadeiro tesouro. Estar ali, presente, atento aos detalhes, aos gestos pequenos, aos afetos que se constroem no tempo das crianças, foi o que mais me ensinou. Percebi que a escuta é uma forma de participação, e que observar também é um jeito de cuidar.

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