No quarto dia da trilha, algo diferente pairava no ar. Não sei dizer exatamente o quê… só sei que, dessa vez, eu não estava com a mesma ansiedade de sempre. Não estava animado demais e nem desanimado. Apenas indo para mais um dia da trilha do tesouro. Ao chegar no lugar do embarque da nave da trilha, percebi que não havia trago meu cartão magnético, logo me bateu um desespero, pois para embarcar era necessário. Conversei com o piloto da nave e me deixou embarcar mesmo assim. Agradeci e segui viagem.
Chegando à escola, lá estava ela, olhos atentos, como quem já esperava. Sabia exatamente o que queria: meus cachos. Sempre os cachos. "Me dá esses cachos pra mim?", dizia sorrindo, como se fosse a primeira vez, embora fosse a milésima vez. Era a Guardiã dos Cachos Escondidos. Nunca ganhava os cachos, é verdade, mas sempre fingia que sim, como se os guardasse num cantinho secreto. Mas dessa vez, algo mudou. Além de pedir os cachos, ela me deu um abraço daqueles demorados, que parecia que havia parado o tempo. E lá ela ficou, nas minhas costas, mexendo devagar nos meus cabelos,
Hoje havia treze guardiões do tesouro escondido. Na sala do tesouro, os guardiões chegaram aos poucos, conversando entre si e espalhando suas energias pelo ar. Em meio a isso, descobriram uma foto da minha sobrinha no meu dispositivo secreto e passaram de mão em mão para ver quem era "a filha do tio". Risadas, curiosidades e comentários foram surgindo ali, embora tivesse falado que era minha sobrinha, nada adiantou, para eles era minha filha.
Mas nem tudo são flores. Durante a escrita da agenda, algo que já virou rotina voltou a acontecer: a guardiã sensível teve sua atividade rasgada por outra auxiliar, não foi a mesma da semana passada, mas outra diferente. Parece que isso nunca muda. Sempre é uma nova auxiliar. Cheguei até a perguntar para a guardiã do compasso, e ela explicou que isso acontece porque as auxiliares sempre saem. A primeira que conhecemos foi demitida, outra se demitiu, e assim vai.
A guardiã sensível só queria terminar a agenda, mas foi interrompida. Chorou bastante, e toda a sala parou. Mais tarde, com o acolhimento da guardiã dos passos sábios, conseguiu retomar e completar sua atividade. Ao fim, disse um "obrigado Naligia" sincero e levou sua agenda para mostrar à Guardiã do Compasso, orgulhosa.
O guardião do redemoinho, desde que chegou, só falava em comida. Quando a Guardiã do Compasso perguntou se ele já tinha comido, ele respondeu que sim: arroz, feijão, macarrão e empanado. E mesmo assim disse: "é que a comida foi pouca".
Durante a atividade do dia, a Guardião do compasso fez um desenho de um cavalo. Foi o assunto da vez. Alguns dos guardiões não pouparam comentários. Um deles até falou: 'Que desenho é esse. -Até eu desenho melhor. E a professora riu, concordando com eles.
Chegou o momento mais esperado para o guardião do redemoinho a hora do lanche. Ele comeu com tanta concentração que parecia que só existia ele e o lanche no mundo.
Depois do intervalo, tivemos um momento diferente: relaxamento com a guardiã do compasso. Teve respiração, massagem e meditação. Logo em seguida, o ensaio para o Dia das Mães. Muitas crianças animadas, dançando com empolgação, algumas no ritmo, outras nem tanto. Mas todas se divertindo, e isso era o que importava.
Depois do ensaio, a sala foi atravessada por um momento que me marcou profundamente. A guardiã do compasso conduziu uma atividade com perguntas sobre a escrita, algo que costuma ser feito com as crianças que já conseguem desvendar os segredos das letras. Mas, dessa vez, ela anunciou: "Hoje eu não vou perguntar para os fortes… hoje é para os fracos." A frase foi repetida mais de uma vez, com uma naturalidade que me deixou desconfortável. Olhei em volta e vi os rostos curiosos, atentos, mas também aqueles que, aos poucos, iam se fechando. Era como se uma linha tivesse sido traçada no chão: de um lado, os que sabiam; do outro, os que ainda não conseguiam.
É claro que não cabe a mim julgar diretamente as intenções da guardiã. Ela tem sua trajetória, seus motivos, seu modo de fazer e há muito que não sabemos da bagagem que cada educador carrega. Mas, como alguém que observa, aprende e se importa, não posso deixar de registrar o incômodo. Aquela divisão explícita entre "fortes" e "fracos" me fez refletir: que mensagens estamos passando quando classificamos as crianças assim, diante de todos? E se alguém ali começar a acreditar que é fraco mesmo, e que esse é o seu lugar?
E foi aí que entendi que, por mais que eu esteja na posição de estagiário, eu posso ser presença. Acolhi uma dessas crianças, caminhei com ela pela atividade, com paciência, sem pressa. E vi que ela queria, sim, não era desinteresse, era só um outro tempo, uma outra forma de aprender. Fiquei ao lado dela não pra provar que era "forte" ou "fraca", mas pra mostrar que ela não estava sozinha. E talvez seja isso que a gente pode fazer, mesmo sem ter as respostas prontas: ser presença quando o mundo parece separar. A escola é espaço de potência, não de comparação. E talvez minha maior aprendizagem daquele momento tenha sido essa: o cuidado com a palavra. Porque, às vezes, o que é dito sem intenção de ferir, deixa marcas que a gente não vê na hora, mas que ficam. A minha trilha nesse dia passou por ali por estar junto, por ser abrigo, por não deixar que ninguém se acredite menos do que é.
No fim do dia, voltei pra casa. Como não estava com o cartão magnético, encarei o trajeto de outra forma: fui numa carruagem reluzente com alguns exploradores aprendiz, dessa vez com ar-condicionado, conforto e nada de tumulto. Só que depois, pra jantar, a falta do cartão apareceu de novo, dessa vez o cartão da estação do reabastecimento. Nada de refeição, naquele momento. Tem dias que parecem que tudo dá errado. Mas, mesmo nos tropeços, há encontros que valem. Hoje foi um desses.
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