quinta-feira, 29 de maio de 2025

O DIA EM QUE O Y PESOU MAIS QUE O ALFABETO INTEIRO (Sadrak Alves)

Hoje tudo parecia estar andando em câmera lenta, o tempo, a nave da trilha e até mesmo eu… Tudo atrasou e como se o universo estivesse avisando que hoje os passos seriam mais duradouros. Cheguei um pouco aflito pois havia me atrasado, geralmente sou um relógio ambulante (como sou conhecido por um amigo).

Ao chegar na trilha, ali a nossa missão já estava traçada pela guardiã do compasso, hoje teríamos que acompanhar seis guardiões do tesouro, aqueles que ainda não haviam desvendado o mistério das letras. Nos deram folha, comandos e metas: – Eles precisam repetir os nomes cinco vezes, preciso que vocês perguntem quais são as letras presente no papel, para observar quais os guardiões não conhecem. 

Até aí não havia visto tanto problema, a questão foi quando a guardiã do Compasso falava várias vezes: – Pode continuar, pois nesse primeiro momento da aula eles vão fazer só isso.

Os guardiões repetia, e eu repetia também. Eu já estava cansado, imagine eles.  Três guardiões comigo, desses haviam dois que já sabia muito bem reconhecer as letras, um só se atrapalhava com o "Y", essa letra que parece escorregar da boca de quem tenta nomeá-la. Rimos juntos tentando falar a letra. O outro só não reconhecia cinco letras, mas de tanto repetir ficou também só no em uma letra. 

Já a terceira guardiã o processo foi diferente, ela tinha mais dificuldade, olhava pro papel como quem olha pro longe. Eu até tentei, mas nada ali fazia sentido para ela, talvez nem para mim. Na condição que eu estava não conseguia pensar em nenhuma outra forma de ensinar de maneira que facilitasse o seu aprendizado, pois fomos pegos de surpresa com essa atividade. Foi aí que perguntei para a guardiã do compasso se havia jogos, como alfabeto móvel, ela disse que sim, tem vários, mas está guardado na torre das estratégias (sala do AEE), esses materiais ficam sempre lá.

Fiquei com isso na cabeça, refletindo por que esses materiais não estão também aqui? Por que não fazer desses jogos pontes para o aprendizado? Talvez, com eles, tudo pudesse fazer um pouco mais de sentido.

No segundo momento, algo voltou a se repetir, aquela famosa distinção entre "os fortes" e "os fracos". Termos que ainda ecoam na minha cabeça, mesmo que eu tente esquecê-lo.  A professora chamava um a um, e os "fortes" tinham que fazer primeiro, enquanto os "fracos" assistiam, se tratava da mesma atividade realizada por aqueles seis guardiões.

Uma das guardiãs acabou tendo mais dificuldade do que esperava a guardiã do compasso e quando terminou a guardiã do compasso olhou e disse: "Pensei que você fosse forte, mas você é fraca".

Assim, na frente de todos, meu peito apertou. Sim, eu sei... Esse assunto já foi bastante discutido. Já ouvimos que é importante ter cuidado com os julgamentos, que há sempre contextos e histórias por trás. E tudo bem, isso tem um pouco de verdade. Mas não tem como ignorar determinadas atitudes, pois há coisas que, ditas diante das crianças, deixam marcas. E como já foi discutido amplamente esse tema… talvez seja melhor guardar essa inquietação para outro momento ou não...

No fim do dia, o mesmo guardião que tropeçava no "Y" foi pego pela mãe, a professora comentou, em tom leve, que ele só não sabia essa letra. O menino sorriu, achando que era vitória, um alívio talvez. Mas a mãe respondeu: – Só? Só? É muito! Amanhã ele volta com Y decorado.  O sorriso dele não caiu de uma vez. Foi sumindo devagar. E eu fiquei ali, calado. Pensando em como, de vinte e seis letras, ele só não sabia uma, e ainda assim, parecia não ser suficiente, como se não houvesse espaço para tropeçar. E isso… isso me entristece. Porque às vezes a conquista é pequena só para quem está olhando de fora. Por dentro, ela pode ser um mundo inteiro.

Ah, e eu quase ia esquecendo… Antes que o dia terminasse, algo ficou marcado que foi: um longo abraço. Na verdade, vários. Foi um dia em que o afeto apareceu sem ser chamado, do jeito mais bonito, sem pressa, sem palavras. Teve um dos guardiões sensíveis, aqueles que falam mais com o corpo do que com a voz,  que passou por um longo tempo me abraçando pelas minhas costas e também cabeça repousada no meu braço. 

Por fim, concluo, que hoje, não foram as letras que pensaram, foi o modo como elas foram tratadas. Foi a pressa em decorar o que ainda poderia ser descoberto devagar, no ritmo da criança. Foi a divisão entre "fortes" e "fracos", como se o aprender fosse uma corrida e não uma trilha. Ver o sorriso morrer devagar no rosto de um guardião que só tropeçou numa letra e que deveria ser celebrado, mas foi cobrado, isso me doeu. Por outro lado, ganhei abraços longos.


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