sábado, 30 de janeiro de 2021

As regras e o jogo

Não gosto de falar em sala de aula. Em quase nenhum outro lugar, para falar a verdade. 

Até nem me importo de explicar as regras de um jogo por cinco, dez ou até quinze minutos. Mas depois disso, gosto de falar tanto quanto qualquer um dos demais jogadores. Melhor ainda se o jogo for cooperativo, porque aí podemos combinar nossa estratégia e táticas.

Meu coração concorda quando lê Loris Malaguzzi: 

"Precisamos produzir situações nas quais as crianças aprendam por si mesmas, nas quais as crianças possam aproveitar seus próprios conhecimentos e recursos de forma autônoma e nas quais garantamos a intervenção do adulto o mínimo possível. Não queremos ensinar às crianças algo que elas possam aprender por si mesmas. Não queremos dar a elas pensamentos que elas próprias possam criar. O que queremos fazer é ativar nas crianças o desejo, a vontade e o grande prazer de serem as autoras de seu próprio aprendizado."

Ao ensinar estudantes de licenciatura, futuros professores, tenho o objetivo mais que geral de que eles, conhecedores da história da Didática e dos dilemas de sua contemporaneidade, possam desenvolver uma didática própria. Os desafios são muitos. Quase nada colabora para a autonomia: vidas atribuladas, tradicionalismo introjetado, imaginação atrofiada...

Aos pouquinhos, um estudante aqui, outro acolá, começam a aparecer autores de seu próprio aprendizado, que serão também, quando professores, autores de situações propiciadoras de aprendizado para outras pessoas.

E eu começo a me animar, sentindo que está chegando aquele momento em que não é mais necessário esclarecer as regras, e estaremos todos descontraidamente jogando.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Professor de Harmonia

Certa vez, em outra universidade, fui surpreendido ao entrar no sistema eletrônico dos professores. Segundo o que eu via na tela do computador, no semestre seguinte eu daria a disciplina de Harmonia, da grade curricular do curso de Música. Pensei para mim mesmo:

— Um dia eu chego lá.

Porque pode haver algo mais elevado do que ensinar Harmonia, independente de qual curso seja?

A definição do dicionário Houaiss é poderosa. Hamonia é a "combinação de elementos diferentes e individualizados, mas ligados por uma relação de pertinência, que produz uma sensação agradável e de prazer".

Não seria a Didática uma tentativa de combinação de estudantes diferentes e individualizados, ligados por uma relação de pertencimento a um interesse comum, o assunto da disciplina, no sentindo de um aprendizado agradável e prazeroso?

Na seção de antônimos do verbete, ou seja de palavras que têm o significado oposto ao de harmonia, além de indicar a óbvia desarmonia, o Houaiss aconselha a procurar os sinônimos de assimetria e desinteligência. Logo harmonia é também inteligência.

Enquanto permanecermos elementos descombinados, desligados, produzindo sensações desagradáveis, seremos desinteligentes. A inteligência, tão louvada e buscada individualmente, pode ser alcançada coletivamente pela harmonia.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Onde dói em quem pergunta?

— Mestre, alguém já morreu nessa situação?

— Você está com medo de morrer agora?

— Sim, mestre.

— Não, ninguém morreu nessa situação.

Quando ouvi esse diálogo, eu soube que estava diante de um mestre. Quem senão um mestre seria capaz de perceber, para além da pergunta, a dor em quem a formulou?

Já faz mais de dez anos que presenciei essa conversa e ainda busco, como professor, desenvolver essa habilidade de percepção. Sem muito sucesso até aqui.

Lembrei muito disso durante os primeiros SOS Didática, em que junto com o prof. Valdinar e outri professori convidadi buscamos auxiliar pessoas que estão passando por situações didáticas difíceis. Após cada encontro, me pergunto: respondemos apenas as perguntas explícitas ou conseguimos também tratar da dor de quem questionou?

O feedback de alguns indagadores, que são mis alunis, indica que às vezes sim, às vezes não. E o exercício continua. Ainda tenho mais alguns SOS Didática este semestre para aprender a responder uma pergunta com maestria.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

A Terra e seus métodos

A Terra é uma escola. Convém lembrar seus métodos.

Imersividade. Na linha da educação de tempo integral e do internato, o espaço-tempo fora da Terra se resume, quando muito, aos sonhos. No mais, não temos como sair dela pelo tempo de nossa existência. Ainda bem que é uma escola grande, bem grande, e mesmo os mais curiosos e dispostos não conseguirão conhecê-la por inteiro.

Transdisciplinaridade. Não temos horário nem local para aprender assuntos específicos. Na Terra, todo o conhecimento circula e é aprendido em conjunto. É difícil até precisar exatamente qual o currículo ou as matérias porque o conhecimento está tanto fora quanto dentro de nós, simultaneamente.

Multisserialidade. Não estamos distribuídos de acordo com nossa idade ou grau de conhecimento ou consciência. Na Terra, é todo mundo junto e misturado. No mesmo espaço-tempo, frequentemente, as pessoas estão aprendendo coisas diferentes, de maneiras variadas.

Infinitude. Não existe um limite para aquilo que possamos aprender ou para o tempo que levaremos aprendendo. Aqui "todo dia é dia e toda hora é hora". Não passamos de ano nem somos reprovados. Retrocedemos e avançamos em múltiplas temporalidades de instantes ou de décadas.

E, então, em nossas instituições de ensino, deveríamos tentar nos apropriar desses métodos? Ou a Terra já é uma escola ultrapassada?

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Educação, amor e paciência

Para Paulo Freire, educar é um ato de amor. Para Paulo de Tarso, a primeira característica do amor é a paciência. Logo, de Paulo a Paulo, educadores precisam ser pacientes.

Paciência histórica, em primeiro lugar, porque como canta Lulu Santos, "assim caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade". Muitos dos grandes problemas da educação, que vivemos diariamente em sala de aula, não serão resolvidos no tempo da nossa existência individual.

Paciência com nossos colegas professores, que às vezes parecem nos atrapalhar, mas que estão apenas tentando fazer o melhor que podem da maneira que pensam que é a melhor. Entre otimistas ingênuos e pessimistas ainda longe da aposentadoria, estamos tão bem servidos quanto Dorothy ao chegar no mundo de Oz.

Paciência com a gente mesmo, pois não somos melhores que nossos colegas. Também somos incoerentes, egoístas, vaidosos, autoritários, escorados, canceladores, inconvenientes... tudo isso enquanto achamos estar fazendo a coisa certa pelo bem de nós mesmos, dos alunos e da educação.

Paciência com nossos estudantes que, na Educação Básica, são obrigados a ir à escola, desenvolvendo a partir disso toda sorte de resistências. E que, na Educação Superior, que supostamente escolheram, ainda demoram a assumir a autonomia do próprio aprendizado.

Paciência ainda com pais, parentes, amigos e namorados de nossos estudantes, que por vezes tomam as dores deles e, sempre com a melhor das intenções, também enchem o saco.

Enfim, educadores, precisamos fortalecer nossa paciência amorosa e ativa. Não apenas suportar os outros e a nós mesmos, mas procurar compreender e melhorar, pouco a pouco. Na maioria dos casos, veremos apenas as pequenas mudanças, mas esperancemos para que nossos netos e bisnetos possam colher os frutos da paciência que estamos plantando agora.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Notas: o dinheiro educativo?

Palavras são curiosas: juntam coisas diferentes. 

Casa tanto pode ser uma construção quanto um espaço vazio numa blusa ou num jogo de tabuleiro. Manga também pode ser muita coisa, permitindo ao cantautor Fabiano dos Santos que junte, escreva e cante: "Não mangue d'eu [...] vamos nos lambuzar de manga [...] só não vale limpar a boca na manga da camisa".

E então temos nota que, entre tantas outras coisas, pode ser avaliação e dinheiro. E na escolarização se fixou realmente como um sistema econômico em que os alunos recebem um pagamento, em notas, para estudar. Embora ainda seja possível ler e aprender por pura curiosidade, são as notas que dão o ritmo do processo de ensino.

Elas são como o final de uma história. Todo o restante da narrativa, desde o início, precisa se desenvolver na direção daquele final. Se, no desfecho, as notas virão de um trabalho escrito, a metodologia precisa favorecer que o estudante escreva esse trabalho e o conteúdo estudado deve ser aquele que o estudante expressará no trabalho. O objetivo real, diferente daquele que foi lindamente formulado, há de ser simplesmente escrever o tal trabalho final.

Um professor universitário como eu, que tem um alto nível de autonomia quanto à sua prática educativa, pode fazer praticamente qualquer coisa durante um semestre menos deixar de dar nota a seus alunos. Sem aquela nota o aluno não passa pelo pedágio da educação. E o professor também não recebe a sua nota, o salário.

Nos meus delírios didáticos, fantasio começar um semestre dizendo a meus alunos que, independente do que façam ou deixem de fazer, todos já têm 10 como nota final. Mas quando penso nas acaloradas reações meritocráticas que enfrentaria, guardo o sonho para mim mesmo e para vocês que leem o didaticário.

Ainda bem que nota também também é som, e podemos cantar em sala de aula de vez em quando sem ter de emitir uma nota fiscal.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Trabalho não é mercado de trabalho

Como professor, e como cidadão, sempre me pergunto:

1. A pessoa não leu?

2. A pessoa leu, mas não entendeu?

3. A pessoa leu e entendeu, mas não deu muita bola?

Por exemplo, as pessoas que defendem que a educação deve preparar para o mercado de trabalho. Elas não leram, leram mas não entenderam ou leram e entenderam mas não deram muita bola para o terceiro objetivo da educacional nacional?

"Art.  205.  A  educação,  direito  de  todos  e  dever  do  Estado  e  da  família,  será promovida  e  incentivada  com  a  colaboração  da  sociedade,  visando  ao  pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho."

Se a pessoa não tinha lido, leu agora. Se nunca deu muita bola, é caso perdido. Então deixa eu me concentrar em quem não entendeu.

A gente não faz educação básica e superior para conseguir um melhor emprego ou passar num concurso. E professores não devem formar mão-de-obra qualificada. O trabalho vai muito além do mercado de trabalho. 

Trabalhar é transformar um coisa em outra. Tudo bem, pode ser transformar borracha em sola de sapato numa indústria de calçados ou tornar uma pessoa num cliente numa central de telemarketing. Mas também pode ser modificar palavras em poemas ou desenvolver plenamente uma pessoa ou converter um consumidor num cidadão.

Qualificar para o trabalho é aprimorar a capacidade de nos lançarmos sobre coisas e pessoas do mundo para torná-lo um lugar melhor para todos. Como são muitas as expressões do trabalho, a educação deve ir muito além da especificidade da preparação para algumas dezenas ou mesmo centenas de ofícios profissionais. 

A educação precisa chegar até o mais importante de todos os trabalhos para o qual precisamos nos qualificar: o trabalho sobre nós mesmos, no sentido de nos aperfeiçoarmos, que, coletivamente, é o trabalho para nos humanizarmos, para nos unirmos, para nos amarmos.

Se não fosse assim, cairíamos na observação de Paulo de Tarso:

"E ainda que conhecesse todos os mistérios e toda a ciência [...] se não tivesse amor, nada disso me aproveitaria." (1 Cor 13: 2-3)

Então no fundo é isso: qualificar para o trabalho não é competir melhor por vagas de emprego, mas transformar a si e ao mundo. E o amor não é apenas o fim da qualificação, é também o meio como já nos revelou outro Paulo, o Freire: "a educação é um ato de amor".


sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Turmalização do ensino

O computador e outras tecnologias digitais sempre se aproximam da educação com uma promessa, a personalização do ensino: cada estudante terá um feedback individual e aprenderá em seu próprio ritmo. Embora tal intenção tenha seus atrativos também traz o risco de aumentar o individualismo já tão presente em nossa cultura educacional.

Na escola moderna tradicional, desenvolvida nos dois últimos séculos, a junção de várias pessoas de mesmo nível intelectual, a turma, em um mesmo ambiente, a sala de aula, cumpre uma função principalmente econômica: que um único professor consiga dar conta de um tanto de gente. Todo mundo junto, mas separado, cada um olhando para a nuca do outro, com foco no professor que está lá à frente. Tal arranjo só precisaria durar, segundo essa lógica, até surgir uma tecnologia que viabilizasse economicamente cada aluno aprender sozinho.

Nos últimos anos de minha experiência como professor, tenho ido na contramão disso. Meu foco tem se ampliado do estudante individual para a turma. Não por desconsiderar o estudante específico, mas por perceber que quanto mais ele está integrado à turma, melhor ele se sente e aprende. Nas minhas aulas presenciais, quase todas as atividades envolvem uma interação direta entre os estudantes, não olhos na nuca, mas olhos nos olhos: em duplas, em pequenos grupos, num grande círculo.

Sinto a necessidade de trabalhar o sentimento coletivo das pessoas, de fazê-las se conhecer, de perceberem os distanciamentos e aproximações que há entre elas, de trabalharem e se divertirem cooperativamente. Tal necessidade se tornou mais forte desde o ano eleitoral de 2018. Não vamos a lugar nenhum neste país e neste planeta se continuarmos a ver uns aos outros como inimigos a serem excluídos, cancelados, eliminados. 

Ontem escrevi sobre o primeiro objetivo da educação nacional: o pleno desenvolvimento da pessoa. Pois o segundo é "seu preparo para o exercício da cidadania", essa condição de cidadão, de pertencente a uma cidade, de participante de um coletivo, de parceiro em espaços públicos compartilhados.

A lógica do eu e dos meus primeiro precisa abrir espaço para uma vivência comunitária mais empática, afetiva e amorosa. Sem prejuízo dos benefícios da personalização, precisamos preparar também a turmalização do ensino. Dar as mãos, cantar e dançar em aulas-ciranda.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Possibilidades

Em 2020, o ENDIPE (Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino) produziu 15.912 páginas de artigos acadêmicos. Tenho estudado esse documento e, dentro de um mar de tanta informação, sinto necessidade de um farol. No meu caso, por incrível que pareça, são algumas poucas palavras da nossa constituição federal:

"Art.  205.  A  educação,  direito  de  todos  e  dever  do  Estado  e  da  família,  será promovida  e  incentivada  com  a  colaboração  da  sociedade,  visando  ao  pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho."

Meu farol nem é tudo isso, se resume a: 

"[...] educação [...] visando ao  pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho."

E, por hoje, vou ficar apenas com o "pleno desenvolvimento da pessoa", o primeiro objetivo da educação nacional.

Como professores, buscamos justificadamente garantir que todos aprendam aquilo que está especificado nos currículos, mas muitas vezes esquecemos desse objetivo básico: pleno desenvolvimento da pessoa. Seres humanos que têm, obviamente, várias características similares, incluindo direitos comuns que devem ser respeitados. Mas o pleno desenvolvimento de uma pessoa é diferente para cada pessoa.

Nossa tendência, ao ensinar, é idealizar essa pessoa, definindo-lhe as características desejáveis: autônoma, crítica, cidadã, etc. Tudo bem, se pensarmos abstratamente. No concreto do dia a dia, entretanto, autonomia, criticidade, cidadania, etceteridade, variam muito, mas muito, no desenvolvimento pleno de cada pessoa.

Gosto de pensar que somos frutos da Terra, frutos de muitas árvores. E que mesmo "cada cajá tem um gosto diferente de cajá", como canta Fabiano dos Santos. Cada um de nós pode ser autônomo, crítico e cidadão de um jeito bem diferente.

Nós deveríamos então planejar o ensino segundo um determinado tipo de autonomia, criticidade e cidadania, e desejar que todas as pessoas se desenvolvam nessa linha? Ou poderíamos planejar segundo esse mesmo tipo e deixar que cada pessoa se desenvolva plenamente à sua maneira? Ou ainda necessitaríamos planejar o ensino considerando não um tipo específico, seja lá qual for o consenso do momento, mas levando em conta um campo de autonomias, criticidades e cidadanias possíveis que, em sua maioria, não podem ser predefinidas ou mesmo previstas?

Pressupomos, com frequência, que tais características são algo que as novas pessoas vão ganhar por intermédio do nosso trabalho na educação. Quando talvez, apenas talvez, tais características já estejam lá, envolvidas, e precisem ser apenas desenvolvidas individual e coletivamente. Talvez nós, pessoas educadoras, precisemos dessas novas crianças, dessas sementes, para nós mesmos desenvolvermos melhor nossa autonomia, criticidade e cidadania.

Aquelas 15.912 páginas podem parecer bastante intimidadoras. Talvez nos sintamos mais seguros com um parágrafo de constituição. Mas aquelas milhares de páginas são uma expressão do desenvolvimento da Didática e de centenas de profissionais da educação. 

Então imagine aí quantas milhares de páginas, gestos, desenhos, coreografias, canções, fotografias, filmes, jogos, roupas, etcéteras seríamos capazes de desenvolver junto com as pessoas estudantes se planejássemos para isso.

Gosto de pensar, e sinto que ensino, não um conteúdo específico, mas possibilidades de pleno desenvolvimento.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

O velho, o garoto e o burro

Quando eu era criança, gostava de ouvir essa história da Coleção Disquinho.

*

Há muitos e muitos anos, caminhavam lado a lado um velho, um garoto e um burro na direção do mercado.

Puxando o burro a trotar, o velhinho ia na frente e o garoto ia montado a cantar alegremente: "Lá, lá, lá, lá, lá..."

O velho fazia coro, caminhando passo a passo, enquanto o trote do burro ia marcando o compasso.

"Vamos bem contentes ao nosso trabalho pelos verdes campos úmidos de orvalho."

Entretanto, mais adiante, ao sol e ao calor do estio, estava uma lavadeira lavando roupa no rio.

"Lá, lá, lá, lá, lá... Vejam só, mas que beleza, já tenho a roupa lavada. Hoje até que andei ligeiro, porém como estou cansada. Agora é tirá-la da água e torcê-la muito bem. Entretanto me parece que na estrada vem alguém. Olhem só, mas quem diria! Se me contam, nem dou fé. O garoto vem montado e o velhote vem a pé. Desce daí preguiçoso! Não vês que falta respeito deixar um pobre velhinho andando a pé deste jeito. Que monte o velho no burro e tu que és forte e bem novo vais a pé. E desse jeito não dás que falar ao povo."

E o garoto ouvindo aquilo foi descendo devagar, enquanto o velho montava o burrinho em seu lugar.

"Desce que eu monto no burro e tu vais andando a pé, assim ninguém falará de nós outra vez, não é?"

Depois, sem dizer mais nada, os três seguiram caminho lentamente pela estrada. Ao fim de longo percurso, nem sei dizer que tamanho, encontraram um pastor conduzindo seu rebanho.

"Eia, eia, devagar! Vamos, Branquinha! Dengosa... não fujam para a floresta! Ó ceus, mas como é teimosa! Venha cá, ande comigo. Por que ficou assustada? Ah, já sei, vem vindo gente. É um burro aqui pela estrada. Mas vejam que desaforo! Andando pelo caminho lá vem um garoto a pé puxando pelo burrinho. Enquanto o velho marmanjo, calmamente nem se cansa, lá vem no burro montado, puxado pela criança. Ei, velhote! Que vergonha! Isto não lhe fica bem. Se quiser andar no burro, monte o menino também."

E o velhinho ouvindo aquilo falou baixo, num sussurro: "Meu filho, não há remédio, montemos os dois no burro."

E assim, pacientemente, levando carga dobrada, lá se foi o pobre burro num bom trote pela estrada. E andaram por longo tempo. O sol bem alto já se ia quando ouviram, de repente, uma alegre melodia. Vejam só quem encontraram numa grande animação. O velho do realejo e seu macaco Simão. Mas quando se aproximaram, devagarinho a trotar, o povo que ali chegara começou a protestar.

"Coitadinho, que maldade! Vejam que carga pesada. São dois em cima do burro, caminhando pela estrada."

E fizeram tal berreiro que o coitado do burrinho saiu correndo assustado pelas curvas do caminho. O velho quase caiu e o garoto, apavorado, segurou-se no cabresto do burro desembestado. E quando tudo passou, disse o velhinho com fé:

"Menino, não há remédio, andemos os dois a pé."

E assim nesse mesmo instante seguiram pelo caminho o velho e o garoto a pé, puxando pelo burrinho. No entanto, mais adiante, quase ao chegar ao mercado, acharam um sapateiro em seu banquinho sentado. Trabalhava atentamente, alegre e feliz, cantando, enquanto seu martelinho o compasso ia marcando.

"Bate sola, bate sola, eu trabalho o dia inteiro. Pregando e passando cola pra ganhar o meu dinheiro. Este ficou como novo. Melhor ninguém jamais fez. No entanto, alguém vem chegando. Será um novo freguês? Olhem só, mas quem diria. O caso é até engraçado. Um velho e um garoto a pé, e um burro caminha ao lado. Ei, velhote! Que se passa? Por que não montas, amigo? Terás por acaso medo que o burro zangue contigo? Ha, ha, ha..."

E os três passaram depressa, fingindo nem dar ouvido, porém na curva da estrada, disse o velho decidido:

"Rapaz, aguenta daí enquanto daqui eu empurro. Só há um remédio agora, vamos carregar o burro. E por onde eles passavam, via o povo com assombro: o velho mais o garoto carregando o burro ao ombro.

"Vejam só que destemidos! Os dois carregando o burro! Devem ser loucos varridos."

E os dois, sem perda de tempo, puseram no chão o burro que, ao cair, apavorado, soltou um tremendo zurro.  Depois, já fraco e cansado, o velhote, aborrecido, chamou o rapaz de lado e lhe disse decidido:

"Menino, escuta-me cá. Monta no burro de novo. Fizemos mal em ouvir a tudo que diz o povo."

E a caminho do mercado, foram os dois finalmente. O garoto ia montado, a cantar alegremente. E o velho fazia coro, caminhando passo a passo, enquanto o trote do burro ia marcando o compasso.

"Vamos bem contentes ao nosso trabalho pelos verdes campos úmidos de orvalho.
Eu vou caminhando a pé, e tu montado de novo, sem prestar mais atenção a tudo que diz o povo.
Vamos bem contentes ao nosso trabalho pelos verdes campos úmidos de orvalho.
Vamos bem contentes ao nosso trabalho pelos verdes campos úmidos de orvalho..."

*

E ainda hoje, como professor, lembro dessa história com frequência quando levo meu velho, meu garoto e meu burro para as feiras: a segunda-feira, a terça-feira, a quarta-feira...

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Alegria na sala de aula

Ontem, estudando a respeito de ludicidade e educação estética, li Vea Vecchi: 

"Não é fácil nem simples falar de beleza e de estética em um mundo torturado por tantas injustiças, pobrezas, opressões, crueldades."

Lembrei imediatamente de um aluno que tive há alguns semestres. Ele faltou as primeiras aulas e, encontrando um clima de descontração na classe, estranhou:

"Uma aula não deve ser tão alegre assim."

Meu estranhamento só de desfez quando li o memorial dele, uma história marcada pela discriminação, pela falta de recursos financeiros e pela depressão. Para meu aluno, a aula deveria ser um espaço de luta, de resistência, e não de alegria.

Com o tempo, ele foi se integrando à turma, se sentindo mais à vontade e até sorrindo durante as atividades mais interativas. Mas não tenho certeza se ele aprendeu algo a respeito da alegria em sala de aula.

Também não sei se aprendi alguma coisa a respeito da luta. Só me imagino lutando para aproximar mais os meus alunos por meio do jogo, do diálogo e da arte. Eu, que já me dei tanta peia, ainda preciso falar e viver e ensinar beleza e alegria.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Chuvinha de inspiração

Luiza de Teodoro dizia que professor era que nem vegetação do sertão: bastava uma chuvinha para ficar verde de novo.

A chuvinha, para nós professores, pode ser qualquer coisa. Não, leitora, leitor, um salário mais digno e melhores condições de trabalho não são chuvinha, são toró, e ficam para um outro diário. O que traz o verde de volta ao coração do professor é a mera expectativa de dias melhores. A esperança costuma vir na forma de inspiração. Alguma coisinha que o professor lê ou ouve. 

Minha inspiração, o ar que eu respiro, vem muito da Luiza, da lembrança de suas aulas e do registro de sua sabedoria em algumas entrevistas para revistas, livros, jornais e até para minha dissertação de mestrado. Quando Luiza fez 80 anos, também reuni depoimentos de ex-alunos e amigos em um livro digital.

Fui transformando as chuvinhas da Luiza em uma nascente de inspiração constante. E agora resolvi mandar tudo de volta para uma nuvem, para que possa chover de novo sobre você. Para tomar banho nessa chuvinha de inspiração, é só clicar neste link.

Abra seu coração ressequido para receber a água suave e iluminada de Luiza.

sábado, 16 de janeiro de 2021

S.O.R.T.E.

— Para ser professor, é preciso S.O.R.T.E.

— E como faço para ter sorte?

— "S" de Simpatia e Silêncio. Um sorriso auxilia muito um professor, favorece a comunicação com os alunos. Quanto ao silêncio, pegue o tempo total de sua aula e divida pelo número de estudantes. O resultado é quantos minutos você deve falar em sala de aula. O resto do tempo, fique em silêncio, ouvindo os alunos.

    "O" de Organização e Oração. Deixe as coisas em ordem e resolva qualquer pendência na medida em que se apresente. Não acumule tarefas ou qualquer outro tipo de coisa. E reze. Não importa se você é cristão, budista, povo de santo, evangélico, espírita ou até mesmo ateu. Reze pra Deus, pra Buda, pros orixás, pra Jesus Cristo, pros antepassados, pra Natureza... Não há como aguentar ser professor sem apelar para as forças invisíveis.

    "R" de Responsabilidade e Reflexão. Responda pelo que lhe acontece, assuma a autoria. Não culpe governo, direção, colegas, estudantes. Todos têm sua responsabilidade também, mas você é o causador da situação em que se encontra. Pense, reflita. Descubra como chegou onde está. E planeje uma maneira de se mover até onde você quer.

    "T" de Terapia e Trabalho. Se puder contar com o auxílio de um terapeuta, ótimo. Se não, desenvolva uma rotina de autoconhecimento mesmo assim. Saiba o que está sentindo e por que está sentindo. Trabalhe em si mesmo. Trabalhar é transformar uma coisa em outra. Converta defeitos em virtudes, inseguranças em esforço, ansiedade em organização. E terapia não é pia por acaso: lave louça, lave roupa, lave tudo.

    "E" de Erros e Experiência. Erre. Erre sem medo. Erre de propósito, aprenda com o erro e invente um próximo erro para continuar aprendendo. A habilidade vem pelo desacerto. Experiência é com X, é radical, é aventura cheia de reviravoltas. Se está bom, se está dando tudo certo, já é hora de errar um pouco e adquirir novas experiências.

— Mas é muito difícil ter sorte!

— Mais fácil e mais seguro do que esperar ganhar na mega-sena.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Paixão é aprendizado

Todo mundo já se apaixonou por um professor ou professora. É algo tão frequente e importante na vida escolar que deveria haver tratados e mais tratados pedagógicos sobre o assunto.

O ambiente educativo é muito propício à paixão porque uma das características mais significativas da paixão é justamente querer aprender o máximo a respeito daquilo por que se está apaixonado. Quando a gente se apaixona, quer saber tudo: nome completo, endereço, signo, comida favorita, vida pregressa... Nada escapa à fome de conhecimento da paixão.

Toda relação educativa com ênfase na curiosidade, na descoberta e na aventura tende a ser apaixonante.

Com o tempo, na medida em que sabemos mais do objeto de nossa paixão, a curiosidade diminui e precisamos lidar com aquilo que já encontramos. Tarefa nem sempre fácil porque várias coisas que descobrimos não são agradáveis. A paixão, que era dominante, agora precisa dividir o espaço com o respeito, a empatia e a tolerância para que a relação possa evoluir para o amor. No caso de uma relação estudante-professor(a), esse amor raramente é fisicamente consumado, mas permanece vivo no coração na forma de doce lembrança e reconhecimento.

Então a paixão é muito bem-vinda, assim como tudo que ela traz de conhecimento, de oportunidade de compreensão mútua e de aprendizado.


quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

As fronteiras da Didática

O SOS Didática começou esta semana e parece que, quando um sonho começa a se realizar, já libera espaço para que um novo sonho possa crescer na imaginação.

Esses dias, tenho sonhado com uma disciplina ou curso de curta duração chamado As fronteiras da Didática. Uma sequência de pequenos estudos exploratórios tratando da possível relação da Didática com outras áreas de conhecimento.

Didática e Design — proximidades criativas. Noções básicas de design como ênfase, equilíbrio, alinhamento, contraste, repetição, proporção, movimento e espaço vazio me parecem muito proveitosas para o uso combinado com os elementos essenciais do planejamento didático: objetivo, conteúdo, metodologia e avaliação.

Didática e Astrologia — estilos simbólicos de pensar, ensinar e aprender. A comparação de mapas astrais de pensadores da educação é reveladora para se compreender a diferença entre as várias teorias pedagógicas. O diagnóstico de estilos de aprendizagem de estudantes também seria possível pela análise de seus mapas astrais. E a própria prática didática de professores poderia ser melhor compreendida e desenvolvida com o conhecimento de sua configuração astral de nascimento.

Didática e Narrativas — monstros, gênios, fadas madrinhas e outros mestres. As histórias orais e também as de livros e filmes trazem um repertório variado e riquíssimo de situações de aprendizagem, de tipos de professores e de métodos de ensino. Tudo ali à espera de uma pesquisa longa, desafiadora e prazerosa.

Didática e religião — os aprendizados da alma. Nossos estudos pedagógicos científicos se restringem a alguns milhares de anos para o passado e algumas dezenas de anos para o futuro, tudo dentro de um universo material, racional e manipulável. Como seria fascinante pensar a Didática no tempo de várias vidas e da vida eterna, e levar em conta aquilo que não está facilmente acessível aos cinco sentidos.

Essas são algumas das fronteiras da Didática. Agora é deixar a semente do sonho descansar e criar raízes no berço do jardim da vida.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

O professor viajante

Não gosto de viajar fisicamente, prefiro ficar em casa. Mas adoro viajar na imaginação. 

Livros, filmes, discos e jogos sempre foram para mim meios de transporte, me fazendo viajar no espaço e no tempo. Sinto como se já tivesse visitado a Londres de Sherlock Holmes, cruzado o futuro galático na Enterprise, vivido no Tempo dos Quintais e colonizado a ilha de Catan.

A educação sempre serviu muito bem às minhas viagens. Embora eu só domine razoavelmente o inglês, já estudei espanhol, francês, italiano e até alemão. Minha Europa é o quarteirão das Casas de Cultura da UFC.

Quando me tornei professor, as viagens continuaram, mas com uma pequena inversão. Eu era o estrangeiro que trazia novidades de terras distantes para os meus alunos. Muitas de minhas aulas causavam estranhamento nos estudantes. E posso até dizer que sofri xenofobia algumas vezes, antes das pessoas amolecerem as resistências e nos tornarmos amigos.

Anel de Möbius - Exposição Labirinto - MAUC 2004

Quando comecei a dar aulas de Didática, em 2014, foi como se eu tivesse descoberto um novo país e uma nova linguagem. A Terra tinha a Antártica, eu tinha a Didática. A língua tinha a gramática, eu tinha a Didática. 

Viajo na Didática como se percorresse o anel de Möbius: cada movimento para baixo é também um movimento para cima, cada deslocamento para fora é igualmente um deslocamento para dentro. 

Com a Didática me sinto ao mesmo tempo em casa e viajando. E sou, simultaneamente, estrangeiro e anfitrião para os meus alunos.


terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Aprender é dominar

O professor ensina com o objetivo de que os alunos aprendam. Mas o que é aprender?

Aprender é dominar algum conhecimento e sua habilidade. Geralmente pensamos conhecimentos e habilidades como coisas razoavelmente distintas, o que pode nos levar a guardar conhecimentos sem desenvolver suas habilidades ou vice-versa. Mas conhecimento e habilidade precisam ser dominados juntos para que se dê a verdadeira aprendizagem.

"A lição sabemos de cor, só nos resta aprender", canta Beto Guedes.

"Por que vocês me chamam 'Senhor, Senhor' e não fazem o que eu digo?", fala Jesus Cristo.

"É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática", diz Paulo Freire.

Dominar é ser senhor, tomar para si, ter como seu, apropriar-se, compreender, apreender, aprender.

Quanto mais dominamos o conhecimento sem a habilidade ou a habilidade sem o conhecimento, mais difícil fica recuperar o terreno perdido. Uma pessoa que domina as teorias tenderá a se deleitar cada vez mais nelas, desmerecendo a prática. Outra pessoa que domina as práticas tenderá a permanecer num transe do fazer, julgando a teoria como inútil. 

A pessoa que vem desenvolvendo conhecimento e habilidade de maneira integrada parecerá, durante muito tempo, ignorante aos teóricos e inábil aos práticos. Mas ela avança de maneira segura. Domina a si mesma e domina as relações. Fala o que faz e faz o que fala. É senhora que obedece a si mesma. Sabe de cor e aprendeu.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

SOS Didática

O tempo exato de cada coisa é imprevisível. Pode durar um segundo, horas, dias... Uma coisa pode até submergir e passar anos se desenvolvendo lentamente, oculta e em silêncio, até se revelar mais uma vez.

Em 2014, minha então namorada e hoje esposa, que já era professora da UFC, pediu para participar de minhas aulas de Didática. Já depois da primeira aula, Lilu começou a aplicar o que ia aprendendo em suas próprias turmas nos cursos de Design e Arquitetura. A aplicação virou adaptação, invenção, ampliação e Lilu e seus estudantes criaram uma abordagem didática inovadora chamada Metadisciplina, da qual falarei num futuro didaticário.

Durante todo esse processo, sempre que passava por um aperreio didático, Lilu me dizia:

— Tô precisando de um SOS Didática.

Eu ouvia a situação e lhe dava alguma dica ou oferecia uma nova perspectiva. Algo simples, rápido, de poucos minutos, mas que sempre teve um efeito positivo na prática pedagógica da Lilu.

Depois de alguns SOS Didática, me surgiu o sonho de fazer o mesmo com mais gente, disponibilizar para outros professores. Vários formatos vieram à minha imaginação: um projeto de extensão e pesquisa, um grupo de WhatsApp, um programa de rádio...

Ao final do longo 2020.1, e com a perspectiva de continuar o ensino online no atrasado 2020.2, senti a oportunidade não apenas de realizar o SOS Didática como um projeto das minhas turmas, mas de fazer isso junto com um primo querido, professor admirável, Valdinar Custódio Filho, da UECE. Sempre tive vontade de colaborar com o Valdinar em algo criativo, e o fato de nós dois estarmos trabalhando apenas online me pareceu uma boa oportunidade.

Então hoje à noite, das 18:30 às 19:30, e pelas próximas segundas-feiras, Valdinar e eu faremos o SOS Didática para professores e estagiária(o)s que estejam precisando de um auxílio didático e que  preencheram este formulário, contando sua situação. Para ver ao vivo, ou assistir às gravações, é só acessar sosdidatica.patio.com.br. A cada semana, teremos um(a) professor(a) convivado(a), que nos ajudará a responder. E nossa primeira visita será justamente a Lilu.

Impossível prever se o SOS Didática durará apenas essas doze semanas ou se continuará acontecendo. O melhor que faço é aproveitar enquanto este sonho didático se realiza.

domingo, 10 de janeiro de 2021

A balança do dia a dia

Acordei e fui me pesar. 

Não consegui ver direito os dígitos na balança. Era como se eu estivesse sem óculos, muito sem óculos, mas eu não preciso de óculos para ver os dígitos àquela distância.

Percebi que estava com o lençol pendurado num dos ombros. Tirei o lençol. Mesmo assim, senti que estava pesando mais do que o normal. Apalpei meu corpo e descobri que estava com uma toalha enrolada no pescoço. 

— Uma toalha?! 

Me livrei dela.

Olhei novamente para a balança. Nada. O mesmo borrão do início.

— P*** m****!!!!

Tomei um susto e acordei de novo, deitado na cama. 

Da primeira vez, eu tinha acordado dentro de um sonho. Agora acordei fora do sonho.

Fui me pesar e consegui ver os dígitos claramente. 

— Ufa!

Emagreci trezentos gramas de ontem para hoje. A impaciência passou.

Moral da história? Nem tudo é Didática no dia a dia de um professor. Professores também acordam, sonham, voltam a acordar e fazem dieta. 

Moral da história para quem insiste que tudo é Didática na vida de um professor e ficou aborrecido porque veio ler um didaticário e leu um diário qualquer? Quando um professor está desbalanceado e impaciente, ele precisa acordar de verdade para deixar o sonho de lado e ver com mais clareza a realidade.


sábado, 9 de janeiro de 2021

O professor aprende mais

A função de um professor é propiciar a aprendizagem dos estudantes. Mas sempre tenho a sensação de que sou eu quem aprende mais.

Supõem-se que um professor domine o conteúdo a ser ensinado e aprendido, o que talvez liberasse o professor de qualquer subsequente estudo. Mas não é o que acontece. Além de precisar se manter atualizado em relação àquilo que ensina, o professor, aula a aula, semestre a semestre, precisa reorganizar o que irá ensinar baseado no aprendizado real dos estudantes. E essa reorganização implica num estudo constante da matéria a que se dedica.

Estudantes, por lei, também têm direito a faltar até 25% das aulas, enquanto professores precisam bater ponto todo dia. Se considerarmos que o comparecimento ao ambiente de aula, presencial ou online, é fundamental para o aprendizado, chega a ser estranho exigir que o professor, que já sabe, esteja em todas as aulas, mas permitir que o estudante, que precisa aprender mais, se ausente de uma em cada quatro aulas. A tendência é que para o professor se cumpra a afirmação bíblica: "[...] a quem tem, mais se lhe dará, e terá em abundância." (Mateus 13:12)

Outro motivo que favorece um aprendizado maior por parte do professor é que ele é o responsável formal pelo andamento do processo de ensino-aprendizagem. Quando somos estudantes, é frequente atribuírmos o sucesso ou o fracasso em uma matéria ou disciplina não a nós mesmos, à nossa disposição, dedicação, disciplina e estudo. É mais fácil dizer que o mérito é do professor, que tem uma boa didática, ou então que a culpa é dele, que não sabe ensinar de maneira adequada. Alguns professores até tentam se iludir e atribuem o insucesso de seus cursos a estudantes desinteressados ou despreparados, mas cedo ou tarde descobrem que têm o poder de planejar suas aulas com alguma liberdade dentro dos limites institucionais em que se encontram. 

E, se tudo isso não bastasse, o professor ainda é pago para se dedicar ao ensino e, consequentemente, ao assunto que ensina.

Pensando bem, não é tão estranho assim que um professor continue aprendendo mais que seus estudantes.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

O conteúdo em si e em relação

Na videoconferência de ontem do LAJE (Laboratório de Adaptação de Jogos para a Educação), o Wagner perguntou pelo "conteúdo em si".

O conteúdo em si é água. Fundamental. É o conteúdo em si que bebemos ou com que nos lavamos. Mas o ato de beber ou de lavar-se é bem mais amplo do que o conteúdo em si. 

Vamos beber um pouco...

Precisamos que o conteúdo esteja num contentor, num continente, num recipiente. Esse objeto é importantíssimo para a experiência de beber água. Será um copo? De vidro? De plástico? Será uma garrafa? Faremos conchinha com as mãos? A temperatura também tem influência na saciedade e na saúde que o conteúdo em si vai trazer. Água gelada? Água natural? Misturada? O próprio local faz parte do ato de beber. Existe diferença entre tomar água ao pé da geladeira, do gelágua ou da pia, de olhos fechados ou encarando uma parede, e bebê-la na varanda, curtindo a brisa e observando a paisagem. O contexto social também é relevante. Estamos bebendo sozinhos, de maneira rápida, para atender a uma necessidade fisiológica urgente? Ou estamos juntos, conversando, interagindo e bebericando água? Isso sem contar de onde veio o conteúdo em si, por que processos chegou até nós, que tipos de trabalho envolveu...

O conteúdo em si é conteúdo em relação. Beber ou aprender o conteúdo em si é se apropriar de um encadeamento complexo de vários conteúdos. 

Manu Kelé canta que o Homem não é uma ilha / Não pode viver só / Precisa de companhia / Precisa de amor. O conteúdo em si e em relação que eu sou, enquanto professor ou estudante, precisa amar e ser amado pelo conteúdo em si e em relação que ensino ou estudo.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

O espaço sagrado da sala de aula

Ontem, durante a cobertura jornalística da invasão ao congresso americano, alguns analistas se referiram ao Capitólio como um espaço sagrado. Fiquei pensando que a sala de aula também é um espaço sagrado, triplamente sagrado.

Sagrado porque virtuoso. Durante o tempo de uma aula, não se deveria entrar numa sala com outros objetivos que não o do aprendizado, do conhecimento e da verdade. Trazemos, de fora da sala de aula, uma série de necessidades dos mais variados tipos, mas deveríamos, professores e estudantes, manter no primeiro plano de nossa mente os melhores valores que temos em nós.

Sagrado porque ritualístico. Embora o ritual varie de instituição para instituição e de docente para docente, deveríamos chegar para uma aula conscientes de que haverá uma mudança no ritmo que seguimos até então durante o dia. Pode ser mais rápido ou mais lento do que estamos acostumados, mas é preciso humildade de professores e estudantes para se vincular a esse ritmo coletivo.

E sagrado porque transcendente. Vivemos num mundo sensorial, numa época materialista, com uma mentalidade de consumo. Muitas vezes chegamos em sala de aula como se estivéssemos entrando em uma repartição ou em uma loja, em busca de um serviço eficiente. Mas a sala de aula é uma espécie de portal dimensional que nos permite, professores e estudantes, entrar em um outro mundo em que somos maiores e mais unidos.

Tentativas de invasão do sagrado espaço da aula acontecem quase diariamente. Precisamos estar vigilantes. Porque os invasores costumam ser nós mesmos.