Neste texto, uso a letra "i" como recurso de linguagem neutra.
Procuro tanto adaptar minhas aulas à situação concreta dis alunis que às vezes esqueço de como seriam as aulas se eu tivesse condições ideais. Uma vez por semestre, tento me lembrar disso.
Nas primeiras aulas, quando is alunis tentam identificar a possível tendência pedagógica manifestada nas aulas, vários dizem "progressista libertária". E eu costumo responder que, embora haja muita participação, is alunis não estão se auto-organizando, o que é uma característica fundamental dessa tendência, mas apenas participam naquilo que eu, como professor, organizei em detalhes. Então faço uma aula para mostrar como seria essa tendência pedagógica na prática.
Para compreender o que acontece nessa aula, quero contar a respeito de uma estratégia que eu usava bem antes e que foi se transformando até chegar nessa aula mais libertária.
Na mesma aula, ou na aula seguinte em que eu perguntava o que is alunis gostariam de aprender sem vinculação com a matéria, eu também perguntava o que eles queriam aprender em relação à disciplina. Da mesma forma que eu reservava algumas aulas para que is alunis compartilhassem o que iam aprendendo dos seus quereres gerais, também tínhamos aulas para compartilhar os aprendizados mais específicos relacionados à disciplina.
Com o passar dos semestres, comecei a me perguntar quão próximo ou distante estava aquilo que is alunis gostariam de aprender daquilo que eu precisava ensinar, do conteúdo obrigatório representado pelos itens da ementa do plano de ensino da disciplina. Então resolvi fazer uma atividade de teste: o mapa dos quereres.
Peço que cada estudante escreva com letras grandes e legíveis, numa folha de A4, três coisas que eles gostariam de aprender relacionadas à matéria. Cada coisa em uma folha. Eu também escrevo cada item da ementa em uma folha. Em seguida, crio dentro da sala ou arranjo próximo à sala, um espaço em que aquelas folhas possam ser colocadas, todas visíveis. Inicialmente, eu fazia no chão, mas também já fiz nas paredes. Dou ais alunis a seguinte missão: organizar todas as folhas por proximidade de assunto. Geralmente, deixo eles fazerem esse trabalho sem intervenções da minha parte. Caso tenham alguma dificuldade, ou quando dão o trabalho por concluído, eu sugiro ou comento alguma coisa. Quase sempre, elis fazem um trabalho muito bom sem a minha ajuda montando esse mapa dos quereres.
O que observei após realizar essa atividade algumas vezes é que não há muita distância entre o que is alunis querem aprender e os conteúdos obrigatórios da disciplina de Didática. Existe, algumas vezes, uma mudança de ênfase, com is alunis desejando aprender mais coisas práticas e menos coisas teóricas. Essa proximidade entre o que tenho a responsabilidade de ensinar e o que is alunis gostariam de aprender me fez confiar ainda mais nos desejos dis alunis e na adequação da ementa do plano de ensino.
Nessa época, 2014-2015, minhas aulas eram baseadas nesses aprendizados individuais compartilhados coletivamente ao longo do semestre. Talvez um dia eu faça uma segunda temporada do Didaticx contando como era nessa época.
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Voltemos a como as aulas são atualmente e como o mapa dos quereres entra nessa aula seguindo a tendência pedagógica progressista libertária.
Cada aluni já traz de casa, como uma tarefa, as três folhas A4, cada uma com uma coisa que gostaria de aprender relacionada à disciplina. Dou então ais alunis a seguinte missão:
A partir dos quereres de aprendizagem expressos nessas folhas, planejem as nossas próximas quatro ou cinco aulas. Até 40 minutos antes do final da aula de hoje [esse tempo pode variar dependendo da quantidade de alunis da turma], vocês precisam apresentar um plano (objetivo, conteúdo, metodologia e avaliação) que a gente deve realizar nas próximas aulas. Eu ficarei apenas observando, mas vocês terão direito a três SOS Didática, momentos em que vocês podem me fazer uma pergunta ou pedir uma orientação, sugestão ou conselho didático. As aulas planejadas devem manter o espírito libertário, ou seja, vocês NÃO PODEM planejar aulas expositivas ou seminários a serem dadas por mim ou por vocês mesmis.
E então o caos começa em sala de aula. E eu sofro calado em meu canto, mas também vibro com as soluções que is alunis pensam. Aos poucos, com maior ou menor sofrimento, is alunis vão pegando o jeito da coisa e conseguem concluir ou se aproximar bastante de um plano exequível.
Algumis alunis se empolgam e participam animadamente, outris não dão conta do caos e, em algum momento, se sentam exaustos. Quem se animou, depois se desespera. Quem cansou, depois volta à ativa. Às vezes, elis fazem algo similar ao mapa de quereres. Outras vezes, vão direto anotando na lousa. É uma dinâmica imprevisível porque depende da personalidade de cada aluni e das habilidades de cooperação e negociação que elis apresentam coletivamente.
Quando o tempo se encerra, sentamos em um grande círculo e eu faço uma rodada dupla de perguntas que cada pessoa deve responder brevemente (em até 30 segundos).
Primeira pergunta: — Como você se sentiu durante o planejamento?
Segunda pergunta: — Você está disposti a levar esse planejamento adiante e realizar essas aulas junto com a turma e comigo ou você prefere que eu, como professor, assuma novamente o planejamento sozinho? Por quê?
Cada resposta não serve como um voto, mas eu avalio se há ou não disposição suficiente para continuarmos sendo libertários por mais algumas aulas. As respostas são bem variadas, mas, nesses vários semestre, uma fala razoavelmente comum é:
— Professor, eu me senti perdida no início, mas depois gostei da experiência. Mesmo assim, eu prefiro que você assuma novamente as aulas porque é muito estressante.
Nos vários semestres em que fiz essa atividade, em várias turmas, uma única vez levamos adiante o planejamento coletivo. Foi numa turma de Pedagogia. A partir do planejamento geral desse primeiro dia, fazíamos planejamentos mais específicos ao final de cada aula para a aula seguinte. Foi um grande desafio porque is alunis, facilmente, queriam ceder ao hábito expositivo, concentrando a execução do planejado em poucas pessoas. Principalmente no início, eu precisava lembrar constantemente o caráter coletivo e libertário da experiência. Com o tempo, elis mesmis começaram a perceber e alertar quando estavam abrindo mão do coletivo. Essa tensão nos levou a criar algumas soluções interessantes. Vou contar uma para que vocês tenham uma ideia.
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Para a 4ª aula, foi definido o tema "Relações de ensino e aprendizagem". Eis as imagens da lousa para o planejamento...
Para essa aula, quem podia levou pinceis extras e distribuímos um para cada pessoa. Na sua própria carteira, cada pessoa colocou uma situação-problema relacionada ao tema: "Relações de ensino e aprendizagem". Algo vivenciado pela própria pessoa ou algo que emergiu das leituras preparatórias que ela fez. Essa situação foi colocada na carteira principalmente por escrito, mas houve quem deixou o celular na carteira com um fone de ouvido para que víssemos um vídeo.
Preparadas as carteiras, as pessoas se levantavam, procuravam uma carteira vaga, sentavam, conheciam a situação-problema e escreviam algo a respeito com o pincel na própria carteira. E assim a gente foi levantando e sentando, repetidas vezes, até dar o tempo de 40 minutos.
Seguem algumas fotos das carteiras ao final desse tempo...
Depois conversamos livremente a respeito do assunto da aula a partir das
situações-problema trazidas e das intervenções feitas nas carteiras.
Em atividades
como essa, todis somos professoris (planejando, levando material e
executando) e todis somos alunis (participando e aprendendo umis com is
outris). Eu gostaria que minhas aulas fossem mais assim.
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Para quem quiser conhecer uma abordagem didática que consegue realizar isso com mais frequência, recomendo pesquisar a respeito da Metadisciplina, criada genialmente pela professora Anna Lúcia dos Santos Vieira e Silva (Lilu) e sis estudantes: https://scholar.google.com/scholar?hl=pt-BR&as_sdt=0%2C5&q=metadisciplina+silva&btnG=
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E você? Costuma incentivar o poder coletivo em sua sala de aula? Como?
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Nos próximos episódios, vou contar o que costumo fazer quando is alunis, ao final dessa aula libertária, decidem que eu devo retomar o planejamento da disciplina.