quarta-feira, 27 de outubro de 2021

ENCENANDO MEMÓRIAS DE AULAS E PROFESSORIS MARCANTES (Didaticx 05)

Neste texto, uso a letra "i" como recurso de linguagem neutra.

Já falei do início de cada aula, com rodas de sentimento e canto coletivo. E do final de cada aula, com a reflexão a partir da ficha de observação. São as partes mais fixas das aulas, embora haja variações de dia para dia. É muito importante a busca desse equilíbrio entre repetição e variedade na Didática. Repetição para dar segurança. Variedade para manter a motivação. 

A partir deste episódio, vou contar o que acontece no meio de cada aula: uma atividade interativa sempre variada. "Atividade" porque is alunis são ativis e não apenas ficam recebendo passivamente aquilo que poderia ser transmitido pelo professor. E "interativa" porque agem umis com is outris, não apenas comigo, professor. Essas atividades estão relacionadas ao conteúdo da disciplina, às vezes mais diretamente, outras vezes mais indiretamente. Com a reflexão a partir da ficha de observação, não é necessário explicitar o conteúdo que está sendo tratado em cada atividade interativa. Essas atividades estão relacionadas principalmente aos objetivos da disciplina, que são muitos, mas no caso de Didática formulo burocraticamente assim: "Desenvolver uma didática multidimensional própria, baseada em experiências pessoais e sociais educativas e inspirada em concepções de ensino existentes". Numa formulação menos burocrática, o objetivo mais geral seria algo assim: "que is estudantes tenham vontade de ensinar e criem sua própria maneira de fazer isso".

Cada atividade interativa é uma potencial experiência memorável. Uma tentativa de criar um momento que ficará guardado na memória afetiva dis alunis e que eli poderá recuperar e adaptar para utilizar quando for professori. 

Uma história, que conheci pela Luiza, dará uma ideia melhor do que tento alcançar com cada atividade interativa. Chama-se "Janela sobre a memória (I)" e é de autoria do Eduardo Galeano...

À beira-mar de outro mar, outro oleiro se aposenta, em seus anos finais. 

Seus olhos se cobrem de névoa, suas mãos tremem: chegou a hora do adeus. Então acontece a cerimônia de iniciação: o oleiro velho oferece ao oleiro jovem sua melhor peça. Assim manda a tradição, entre os índios do noroeste da América: o artista que se despede entrega sua obra-prima ao artista que se apresenta.

E o oleiro jovem não guarda esta peça perfeita para contemplá-la e admirá-la: a espatifa contra o solo, a quebra em mil pedacinhos, recolhe os pedacinhos e os incorpora à sua própria argila.

Assim como recebi, espatifei e incorporei à minha prática as aulas da Luiza e de outros professores memoráveis, cada atividade interativa que proponho é como um vaso de barro que ofereço ais alunis para que elis possam espatifar, recolher os pedacinhos e incorporar à sua própria argila. E é isso que você, que está me lendo, também pode fazer. Não aplicar exatamente as atividades interativas que contarei, porque elas foram criadas para determinados contextos específicos, mas se inspirar nessas atividades e recombinar partes delas com partes de outras atividades que você já realiza.

Comecemos então...

*

Na primeira aula, geralmente, peço que cada aluni lembre de umi professori ou de uma aula que foi marcante, negativa ou positivamente, para si. Como a lembrança costuma vir quase imediatamente, dou apenas um ou dois minutos para isso. Embora eu também pudesse pedir que is estudantes registrassem por escrito, de maneira breve ou fazendo uma carta para essi professori.

Depois agrupo is alunis em quartetos (geralmente prefiro trios, mas para essa atividade é útil ter mais estudantes em cada grupo já que faremos encenações que talvez precisem de mais personagens). Para não reforçar as panelinhas naturais que há em toda sala, uso alguma técnica como a de contar o número de alunis, dividir por quatro para calcular o total de grupos, atribuir a cada aluni um número de 1 até o total de grupos e depois pedir que as pessoas que receberam o mesmo número se juntem. Dessa forma, as pessoas amigas, que geralmente sentam próximas, formarão grupo com pessoas que sentam longe delas. Por exemplo, se tenho 43 alunos, são 10 grupos (43 dividido por 4), atribuo o número 1 a umi aluni, 2 ai seguinte e assim por diante até 10, depois 1 novamente ai aluni seguinte, continuando assim até que todis tenham recebido um número. As pessoas que receberam 1 se juntam, as pessoas que receberam 2 se juntam... as pessoas que receberam 10 se juntam. Como a divisão não era exata, três dos grupos ficarão com uma pessoa a mais. Não tem problema. Quando forem chegando pessoas atrasadas, elas se juntam aos grupos já formados que têm menos gente.

Três coisas antes de continuarmos...

Primeiro, destaco a importância de quebrar as "panelinhas" e rejuntar os pedaços (pessoas) em outro grupo, outra obra de arte. A criação de um sentimento de turma, em que cada pessoa seja capaz de se comunicar com todas as outras pessoas, é muito importante. A aprendizagem personalizada, uma das grandes bandeiras da educação contemporânea, tem lá os seus méritos, mas é pela interação social que a educação pode ser realmente transformadora para cada pessoa, para o grupo social de que ela faz parte e para a sociedade como um todo. A individualidade deve ser respeitada e estimulada em sua expressão única, mas devemos combater o individualismo e a competição que são o espírito dessa nossa sociedade desigual. Fazer com que is alunis conheçam umis ais outris, conversem, interajam, é uma alta prioridade de tudo que planejo para a sala de aula.

Segundo, quando uma pessoa que chega atrasada vai entrar em um grupo, levo a pessoa até o grupo, apresento a pessoa  e peço que o grupo explique a atividade para a pessoa que está chegando. Dessa maneira, fico liberado para circular entre os grupos e também dou mais uma oportunidade para que is alunis ensinem umis ais outris. Em qualquer disciplina, isso seria útil. Numa disciplina de Didática, é sempre mais uma oportunidade de ensino.

Terceiro, pode parecer óbvio mas é bom garantir que is alunis, em cada grupo, estejam sentados de maneira que todis possam se ver e ouvir.

Então, em grupos, cada estudante vai contar para as outras pessoas qual a sua aula/professori marcante. Isso dura de 10 a 15 minutos. Em seguida, peço que cada grupo escolha uma das lembranças para encenar. O critério de escolha fica a cargo dis alunis. Dou então uns 10 minutos para que is alunis planejem a encenação, com uma única exigência: que o papel di professori seja desempenhado peli aluni que relatou aquela lembrança. Assim, i aluni terá a oportunidade de se colocar na pele di professori marcante. Depois, cada grupo apresenta sua encenação, que geralmente não dura mais que 5 minutos. Antes do início das encenações, talvez seja útil desfazer o formato dos grupos para que seja formada uma plateia, de preferência deixando as pessoas de cada grupo longe umas das outras para que elas não continuem planejando sua encenação sem prestar atenção em quem está encenando no momento.

As encenações costumam ser divertidas e emocionantes. Além de uma oportunidade para as pessoas tímidas se superarem e para as pessoas extrovertidas brilharem. Muitas vezes, tenho vontade de ter gravado não só essas encenações mas muitas outras atividades interativas, mas fico com medo de tirar o foco do principal, que é a experiência no presente. De todo modo, é algo a considerar no futuro.

Concluídas as encenações, fazemos um grande círculo e pergunto quem quer falar a respeito da experiência. A essa altura, is alunis geralmente estão animadis. Eu também. Quando ninguém tem mais nada a falar, ou se já é hora da ficha de observação, seguimos adiante na aula.

*

Você considera, nas suas aulas, as memórias que is alunis têm relacionadas ao conteúdo da sua disciplina? Essas memórias poderiam ser encenadas?

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

CONTEÚDO VIVENCIADO E REFLETIDO (Didaticx 04)

Neste texto, uso a letra "i" como recurso de linguagem neutra.

Foi uma tristeza que deu origem a muitas alegrias. No final do semestre 2018.1, quando eu dava aulas na UECE, percebi que vários de mis alunis não sabiam formular um objetivo em um planejamento didático. Era um conhecimento muito importante para futuris professoris. Fiquei triste. Triste mesmo. Muito triste.

Eu poderia ter seguido com culpas e desculpas: essis alunis não leram o texto, essis alunis faltaram ou chegaram atrasadis às aulas em que tratamos disso... Mas, na minha tristeza, eu só me perguntava:

— Tem alguma coisa que eu possa fazer? O quê?

*

Numa de suas mais famosas citações, Paulo Freire diz que "ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção".

Nunca vi ninguém discordar dessa afirmação. Quase todo mundo acha linda. Mas colocar em prática é coisa bem diferente. A tentação de querermos transferir aquilo que aprendemos para nossis alunis é grande.

Aquilo que somos tentados a transferir é o que geralmente chamamos de conteúdo. Todo o sistema educacional é montado em torno dele. Tópicos e subtópicos de conteúdo para cada área do conhecimento. O que traz um livro didático, o recurso mais utilizado em nossa escolarização? Conteúdos. Muitos conteúdos.

Na universidade, nas disciplinas pedagógicas de formação de professores, geralmente não se usam livros didáticos que são seguidos capítulo por capítulo, mas existe a famosa "pasta na xerox", que não é outra coisa senão uma apostila, mais ou menos organizada de textos. Conteúdo, conteúdo, conteúdo.

Mas o sistema inteiro, baseado no conteúdo, parece não levar o conteúdo muito a sério. Para passar por média, precisa-se apenas de um 7,0. Uma pessoa que não aprende 30% do conteúdo ainda é considerada boa aluna. E, com uma prova final, ou depois de uma recuperação, i aluni pode seguir adiante tirando apenas 5,0, ou seja, sem saber 50%, metade, daquilo que deveria. Dos 100%, existe algo que é fundamental? Aparentemente não. E, mesmo que houvesse, tanto faz se no percentual que is alunis não aprenderam há ou não algo fundamental. Se o sistema fosse sério, is alunis só precisariam aprender o que é essencial, e teriam que aprender 100% do essencial. Então, se não podemos desconsiderar o sistema, pois precisamos, como professoris, do trabalho e is alunis precisam da escola como obrigação constitucional, pelo menos não devemos levar o sistema tão a sério.

*

Estava eu entre essa tristeza de que algumis alunis não estavam aprendendo algo muito básico, a dúvida sobre o que seria essencial que mis alunis aprendessem e o questionamento sobre como fugir do sistema sem sair completamente do sistema.

Foi quando lembrei de uma atividade que vinha fazendo nos dois últimos semestres: análise de cenas didáticas de filmes. Esse assunto merece um episódio inteiro do Didaticx, então, por enquanto, saiba apenas que nós assistíamos pequenos trechos de filmes (filmes comuns, comerciais) em que um personagem ensinava algo a outro personagem. Após cada trecho, analisávamos a didática daqueli "professori" do filme. Tentávamos adivinhar que tendência pedagógica aqueli professori seguia ou qual era o plano daquela sua "aula". O trabalho com as cenas didáticas era uma forma de ligar o interesse dis alunis (os trechos de filmes eram trazidos por elis mesmos) com o conteúdo da disciplina. Eu usava durante cinco aulas e funcionava bem.

Fiz então a pergunta abracadabra:

— E se eu fizesse algo parecido toda aula?

*

É difícil comunicar todo o processo didático criativo que se seguiu. Foram muitas ideias e muitas tentativas de organizar e colocar em prática essas ideias. Não pense que o que vou apresentar em seguida veio pronto. Não. É um trabalho ainda em andamento, com modificações de semestre a semestre, desde 2018.2 até agora.

Então é o seguinte...

Defini primeiro os conteúdos essenciais, baseados na ementa da disciplina, mas com alguma liberdade de nomenclatura e ordenação. Fiz tanto para Metodologia do Trabalho Científico quanto para Didática. Tratarei só da Didática aqui. Os conteúdos essenciais eram: 1) Definição de Didática (original e contemporânea); 2) Dimensões da Didática (humana, técnica e política); 3) Tendências Pedagógicas (liberais e progressistas); e 4) Elementos do Planejamento Didático (objetivo, conteúdo, metodologia e avaliação).

Sintetizei esses conteúdos no que chamei de "ficha de observação". Não é um nome pelo qual eu morra de amores, mas ainda não achei nome mais adequado. Vejam uma imagem da ficha de observação...


Na última parte da aula, tendo por volta de 30 minutos, usávamos a ficha de observação para pensar a respeito da aula que estávamos tendo. Primeiro, em aproximadamente 5 minutos, cada aluni tentava preencher a ficha por si, identificando como as dimensões da Didática haviam se manifestado na aula, qual a possível tendência pedagógica do professor e como havia sido pensado cada elemento do plano da aula.

Por exemplo, uma ficha poderia ficar assim após preenchida...


Neste exemplo, foi marcada mais de uma tendência pedagógica porque é comum is alunis ficarem em dúvida. E também porque uma aula nem sempre é expressão inequívoca de uma única tendência pedagógica.

Depois que algumis alunis haviam terminado, eu os dividia em grupos, de forma que cada grupo tivesse pelo menos uma pessoa que havia preenchido tudo. Nesses grupos, em aproximadamente 10 minutos, is alunis compartilhavam o que haviam observado e faziam alterações em suas próprias fichas. Eu passeava entre os grupos, observando, tirando alguma dúvida, fazendo algum comentário.

Finalmente, fazíamos um grande círculo e, em aproximadamente 15 minutos, eu perguntava a duas ou três pessoas a respeito de cada item da ficha, fazendo eventuais correções e acréscimos. Mas, na maioria das vezes, bastava o que os estudantes haviam observado. Eu procurava não falar muito. Essa é uma coisa muito importante quando se está tentando construir conhecimento com is alunis e não transferir conhecimento para is alunis: falar pouco. Possivelmente dedicarei um episódio do Didaticx a essa distribuição do tempo de fala e outros tempos da sala de aula.

Por meio dessa reflexão a cada aula, i aluni percebia o conteúdo não apenas abstratamente, mas vivenciado, em ação. Como usávamos a ficha ao final da aula, todis is alunis já haviam chegado, então os que precisavam chegar atrasadis não perdiam o momento mais explícito do conteúdo. Quanto aos que faltaram (is alunis podem faltar até 4 das 16 aulas), eles teriam muitas outras oportunidades de conhecer, reconhecer e refletir a respeito dos conteúdos essenciais da disciplina. E em cada tópico da ficha, há indicação de um autor citado na bibliografia do plano de ensino da disciplina. Caso i aluni queira se aprofundar naquele tópico, é só ler aquele livro/artigo. Ou seja, não tínhamos leitura obrigatória e/ou discussão de texto em sala de aula como estratégia de ensino. Conversávamos pontualmente sobre os textos indicados na medida em que algumi aluni trazia alguma dúvida ou comentário sobre a leitura para a sala de aula.

Às vezes, dependendo de fatores diversos, pulo a parte individual ou de grupos, mas sempre mantendo o círculo final em que avalio as percepções dis alunis a respeito do que aconteceu em sala.

Creio que é possível fazer isso para praticamente qualquer disciplina ou matéria: definir conteúdos essenciais e trabalhá-los diariamente. Por exemplo, quando dei a disciplina de Metodologia do Trabalho Científico, essa era a ficha e analisávamos a aula como se ela fosse uma pesquisa científica.


A utilização da ficha me deu mais tranquilidade em relação ao aprendizado dis alunis. Agora tenho a sensação de que estou fazendo praticamente tudo que posso para que is alunis aprendam. Sim, ainda há alunis que chegam ao final do semestre sem terem aprendido tudo que está na ficha, mas já posso dividir essa responsabilidade com elis com a consciência mais tranquila agora.

Outra coisa positiva do uso da ficha é a reflexão sobre minha própria prática pedagógica. Como o objeto de análise da ficha é a própria aula, e essa análise é feita pelis alunis, eu sempre sou surpreendido pelos seus pontos de vista. Testemunhas da aula que planejei e realizei, elis me dão retornos objetivos e subjetivos a respeito de como a aula está realmente acontecendo. A partir disso, tenho muito mais elementos para fazer alterações na minha prática. É um aprendizado diário.

Para além disso, o grande benefício da reflexão a partir da ficha de observação foi me liberar para ousar mais durante o meio da aula, em que realizo a atividade principal do dia. Agora que sei que o estudo mais explícito do conteúdo essencial está garantido, me permito experimentar mais ao tratar de outros assuntos ligados à disciplina. Então temos, na primeira meia hora da aula, a roda de sentimentos e a música, na meia hora final a reflexão a partir da ficha de observação, e no meio da aula (por volta de 90 minutos nos cursos presenciais noturnos) uma atividade interativa relacionada ao conteúdo da disciplina, mas não necessariamente a respeito dos conteúdos essenciais que serão tratados no final da aula.

Os episódios seguintes do Didaticx, possivelmente mais de dez deles, serão dedicados a cada uma dessas atividades interativas. Em algum momento, talvez mais para o final da série, tratarei também da questão do espaço-tempo da aula e da avaliação, que são as questões mais difíceis de enfrentar quando queremos mudar nossa prática de ensino. Mas para entender melhor o que tenho a dizer a respeito disso, é mais interessante vocês terem primeiro uma ideia das atividades interativas que realizo. Assim, o que eu falarei no final não soará tão abstrato.

*

Ensinar não é, principalmente, fazer com que is alunis assimilem determinados conteúdos. É introduzir i aluni em determinada cultura ou fortalecer sua atuação nela.

Na clássica experiência de alfabetização de Angicos, Paulo Freire e sua equipe partiram do que is alunis já sabiam, de coisas da sua realidade próxima. Uma das palavras usadas na alfabetização era "tijolo", algo do dia a dia dis alunis. Palavras como ti-jo-lo eram decompostas em sílabas, agrupadas em famílias (ta-te-ti-to-tu, ja-je-ji-jo-ju, la-le-li-lo-lu) e rearrumadas para formar palavras e frases. Um relato emocionante desse processo foi quando um aluno escreveu a seguinte frase: "Tu já lê". Ao demonstrar seu aprendizado, o aluno comunicou que já fazia parte da cultura da leitura.

Quantas vezes, como professoris, não forçamos tanto nossis alunis a aprender determinado conteúdo ao ponto de criar uma resistência? Quantas pessoas, supostamente alfabetizadas, dizem não gostar de ler? Aprenderam conteúdos, mas não se inseriram na cultura da leitura. O mesmo vale para Matemática, Química, Biologia...

O meu "tu já lê" é quando, ao final da disciplina, uma aluna diz "professor, voltei a ter gosto pela Pedagogia". Ou então: "professor, você me fez perceber que eu posso ser eu mesma nas aulas do meu estágio". Claro que essas alunas aprenderam algum conteúdo, mas o principal aprendizado aqui é de inserção na cultura. A primeira aluna voltou a se sentir próxima da cultura pedagógica. A segunda aluna sente que pode atuar na cultura escolar de maneira mais autêntica.

Eu era um estudante de bacharelado em História que queria ser historiador, pesquisador. Mas as aulas de uma professora, Luiza de Teodoro, me fizeram dizer para mim mesmo:

— Isso que a Luiza faz com a gente, eu quero fazer com outras pessoas. Quero ser professor. 

Luiza me fez querer entrar na cultura docente. Foi mais do qualquer professori, antes ou depois, me ensinou. Porque Luiza me ensinou o essencial do essencial: querer fazer parte daquele conhecimento em contínua construção. E é só isso que precisamos fazer como professoris: que nossis alunis queiram fazer parte do mundo do Português, da Matemática, da Geografia... Porque uma vez tomada ou fortalecida essa decisão, a pessoa tem todo o tempo restante para aprender os conteúdos necessários para se comunicar e atuar nas culturas escolhidas.

Como escreveu Yeats, "Educação não é encher um balde, mas acender uma fogueira".

E você, professori, como pensa e trata o conteúdo em suas aulas?

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

CANTANDO E DANÇANDO COM IS ALUNIS (Didaticx 03)

Neste texto, uso a letra "i" como recurso de linguagem neutra.

E como há muitas canções, fiz também uma leitura para quem quiser ouvir as melodias. Está neste link: https://drive.google.com/file/d/1nJwlMRa9JLCY4401jolpoYBqrwXv1IJr/view?usp=sharing

 

Talvez você, que acompanha o Didaticx desde o primeiro texto, esteja se perguntando:

— Mas o Eduardo não dá aula, não? Fica só enrolando? Cadê o conteúdo?

Compreendo a preocupação di leitori, e já no próximo texto falarei de conteúdo, mas peço, com o Lenine, um pouco mais de paciência: "Enquanto o tempo acelera e pede pressa / Eu me recuso, faço hora, vou na valsa / A vida é tão rara".

Hoje quero falar com você a respeito de música. Parece meio óbvio: todo mundo gosta de música, então a música deveria estar em todo lugar, inclusive numa sala de aula. Mas até eu, que amo música, demorei pra começar.

Luiza, minha saudosa e querida mestra e amiga, levava música para a sala de aula: tocava e comentava discos, às vezes cantávamos. Mas de algum modo eu achava que aquilo era porque a disciplina se chamava "A arte na História".

Quando comecei a dar aulas de Didática em 2014, após alguns anos distante da universidade, certa vez resolvi cantar com as pessoas que estavam esperando dar a hora de começar a aula na turma de Pedagogia. Peguei uma canção que a Luiza tinha nos ensinado naquela disciplina, uma pequena canção em latim: "Pauper sum ego / Nihil habeo / Cor meum dabo" (Eu sou pobre / Nada tenho / Dou meu coração). Todos gostamos da experiência e passamos a cantar outras músicas quando chegávamos cedo, antes das 18h30. Na outras turmas, eu cantava de vez em quando também. 

*

Quando dei aulas na UECE, de 2017 a 2019, não costumávamos cantar, embora a música aparecesse vez ou outra. 

Certa vez, na disciplina de Metodologia do Trabalho Científico, ouvimos a música "O segundo sol", do Nando Reis: "Quando o segundo sol chegar / Para realinhar as órbitas dos planetas / Derrubando com assombro exemplar / O que os astrônomos diriam se tratar / De um outro cometa". Assistimos um vídeo em que o compositor contava a história da música. E conversamos sobre os vários tipos de conhecimento: científico, filosófico, religioso e artístico.

Em outra ocasião, fizemos uma vivência biocêntrica, em que dançamos uma sequência de cinco músicas trabalhando a relação individual-coletivo. Falarei mais da Educação Biocêntrica adiante.

Também pedi que os estudantes fizessem um jingle para "Didática Geral".

E tocamos e cantamos na confraternização do último dia de aula em algumas turmas.

A música estava por ali, timidamente pedindo passagem.

*

No segundo semestre de 2019, já de volta na UFC, novamente como professor substituto, reencontrei nos corredores uma querida aluna daquele tempo de cantar antes da aula na turma de Pedagogia, e a primeira coisa que ela perguntou foi: 

— Como era aquela música que a gente cantava?

— Qual música?

— Uma cantiga de ninar...

A conversa ativou lembranças e resolvi cantar na aula que daria na sequência, também no curso de Pedagogia. "Pauper sum ego", claro. Dessa vez, não antes da aula, mas durante a aula mesmo, logo após a roda de sentimentos. Coloquei a letra na lousa e desafiei is alunis a traduzirem. Eu ia cutucando, dando dicas: "Qual dessas palavras vocês conhecem? 'Ego'? O que quer dizer 'ego'? 'Eu'? Muito bom, já temos nossa primeira palavra. E 'pauper'? Nós usamos algo parecido com 'pauper' em português? Alguém lembra? Isso, 'paupérrimo'. Que quer dizer? "Muito pobre", bom. Então 'pauper' é... 'pobre', isso". Então temos 'pobre sum eu'. O que quer dizer 'sum'?" E assim seguimos até traduzir tudo.

Depois pedi que todis se levantassem e fizessem um semicírculo. Comecei a ensinar a melodia, frase por frase. Repetindo, repetindo, repetindo. Vozes tímidas. Repetindo, repetindo, repetindo. Eu chegava pertinho de cada pessoa pra ouvir se estava certo, se precisava de algum apoio. Repetindo, repetindo, repetindo, até conseguirmos cantar todos juntos. Uma beleza! Tão bom o som de uma sala de aula cheia de música feita pela gente mesmo!

Ao final, uma aluna que falou que estava triste durante a roda de sentimentos, disse assim, bem mais animada:

— Professor, a gente devia fazer isso toda aula.

Eu olhei em volta e percebi as expressões de concordância dis demais alunis. A música tinha tocado cada umi de nós. Combinamos então de cantar no início de cada aula, após a roda de sentimentos. E resolvi levar a novidade também para as outras turmas de licenciatura, que misturavam estudantes de vários cursos.

Cantamos "Funga-funga" ("Eu sou o Funga Funga / E sou um pouco diferente / Mas não entendo por que todo mundo / Me olha como se eu não fosse gente"), "Minha ciranda" ("Minha ciranda não é minha só / Ela é de todos nós"), "Frère Jacques" ("Frère Jacques / Frère Jacques / Dormez-vous? / Dormez-vous?"), "Canção do mestre" ("Mestre é quem um tanto ensina e um tanto mesmo aprende"), "Row your boat" ("Row, row, row your boat / Gently down the stream / Merrily merrily, merrily, merrily / Life is but a dream") , "Mané Pipoca" ("M a ma / N e né / Mané / P i pi / Mané pi / P o po / Mané pipo / C a ca / Mané pipoca"), "Tindolelê" ("Oi abre a roda tindolelê / Oi abre a roda tindolalá"), "Já é hora de dormir"...

Foi incrível! Como nosso humor melhorava! Como nos conectávamos!

No semestre seguinte, começamos cantando. Já era essencial à minha didática. Mas eis que chegou a pandemia e carregou a cantoria pra lá. É de cantar juntos que sinto mais falta nas aulas presenciais. As aulas remotas, com o pequeno atraso na transmissão, torna a experiência de cantar juntos um suplício sonoro. Fiquei tão bloqueado musicalmente que nem consegui criar uma alternativa. Nada que eu pensava me parecia tão bom quanto cantarmos juntos. Essa foi uma das minhas falhas durante a pandemia: não ter dado um jeito de manter a música como atividade diária nas disciplinas.

Mas voltemos um pouco a 2019-2020 porque ainda quero contar algumas coisas de música e... dança.

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A disciplina de Didática na Pedagogia tem carga horária dobrada em relação às demais licenciaturas: são duas aulas por semana. Resolvi então fazer o seguinte. Uma das aulas da Pedagogia teria o mesmo planejamento da aula semanal das demais licenciaturas. A outra aula seria completamente vivencial e experimental. 

No início dessa segunda aula, eu retomava a canção que havíamos aprendido na primeira aula da semana, dividia a turma em pequenos grupos e pedia que cada grupo criasse uma coreografia para a canção. Depois cada grupo ensinava a sua coreografia para toda a turma. Quanta criatividade! Quanta alegria! Cantávamos e dançávamos nas sextas-feiras à noite. "Sextou Didática", como repetiam alguns alunis.

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Depois das coreografias, fazíamos algumas vivências biocêntricas.

A Educação Biocêntrica é uma abordagem pedagógica desenvolvida por Ruth Cavalcante e Cezar Wagner de Lima Gois que combina o princípio biocêntrico da Biodança de Rolando Toro com a educação dialógica de Paulo Freire com a teoria da complexidade de Edgard Morin. Fiz uma especialização em Educação Biocêntrica entre 2015 e 2017, e essa aula extra da Pedagogia foi a oportunidade ideal para colocar muita coisa em prática.

Eu escolhia uma sequência de músicas para trabalhar uma ou mais linhas de vivência da Educação Biocêntrica. Essas linhas compreendem: vitalidade, afetividade, criatividade, sexualidade e transcendência.

Vou dar um exemplo de uma dessas sequências. Cada música é precedida por uma "consigna", uma pequena fala afetiva que estabelece o sentido do exercício e dá instruções sobre como realizá-lo. Essa consigna é dada, geralmente, com todos em círculo, mas também pode acontecer das pessoas ouvirem de onde estavam quando a música anterior acabou. Muitas vezes, principalmente se o exercício é individual ou em duplas, quem está conduzindo a atividade também coloca a música por uns 30 segundos e dança exemplificando como o exercício deve ser feito, chamando um voluntário caso o exercício seja em dupla. Abaixo vou indicar também algumas palavras-chave que orientam a consigna.

Andar com fé (composição de Gilberto Gil na interpretação dele mesmo). Individualidade e vitalidade. Nós muitas vezes chegamos cansados para a aula. Até desesperançados. Na vida, é importante a gente recuperar nossa força, nossa confiança na gente mesmo e em algo maior que a gente. Vamos então dançar caminhando com fé. Passos firmes, cabeça erguida. "Nem besta nem abestado", nem com queixo empinado nem com a cabeça baixa, como diz Nininha Militão. Tomando cuidado para não bater nos outros, mas com determinação. É uma dança solitária para fortalecer a individualidade, então não se junte a ninguém. Apenas dance caminhando, recuperando sua vitalidade e fé.

Se enamora (composição de Edgard Poças, Garofalo, Giannino Gastaldo, Monti e Vicenzo Giuffre na interpretação d'A Turma do Balão Mágico). Encontro e afetividade. Em nossa caminhada individual, a gente encontra pessoas, sente curiosidade, se aproxima, convive, depois se afasta mas já tendo estabelecido uma relação que pode gerar futuros reencontros. Escolha então um par para dançar a próxima música (as pessoas formam pares). Esses pares vão caminhar, dançar juntos, como se fosse um passeio, de mãos dadas, braço na cintura ou outra maneira que criem. Após um certo tempo, quando eu indicar, você se despede brevemente de seu par, com um abraço ou outra saudação, evitando falar para não perder a concentração, e busca formar um novo par para continuar caminhando e dançando.

Struggle for pleasure (composição instrumental e interpretação de Wim Mertens). Estabelecimento de limites. Nos encontros com os outros, estamos sujeitis a invadir ou ser invadidis, perdendo dimensões significativas da nossa individualidade. É importante então estabelecermos limites. Com o par com o qual você terminou a música anterior, você vai dançar com as mãos espalmadas umi di outri se tocando e os pés de cada umi plantados no chão. Os pés quase não se movem enquanto as mãos tentam avançar na direção da outra pessoa, mas sem empurrar com força excessiva. Mantenha sempre o contato visual com o outro. Às vezes uma mão avança enquanto outra recua. Você avança até onde a outra pessoas der o limite. E você dá o limite quando sente que a pressão da outra pessoa está muito forte. Busquem uma harmonia, um equilíbrio nesse movimento de dança. Quando eu der o sinal, você se despede do seu par e procura um novo, da mesma forma que fez na música anterior.

Minha ciranda (composição de Lourenço da Fonseca Barbosa na interpretação de Lia de Itamaracá). Coletividade e solidariedade. Além do encontro umi a umi temos também o encontro de todis, da coletividade, da comunidade, em que dançamos mais próximis, dando sustentação umis ais outris, exercendo a solidariedade. Vamos dançar em círculo uma ciranda, de mãos dadas. Durante a dança, troque olhares com várias pessoas, reconhecendo cada pessoa que está na roda como alguém que dança, trabalha e estuda com você.

Imagine (composição e interpretação de John Lennon). Acolhimento e união. Para finalizar, vamos estreitar o círculo, nos abraçando pela cintura com o sentimento de acolhimento e de união. Os pés nem saem do chão, o corpo apenas balança lentamente, pra lá e pra cá. Olhemos uns nos olhos dos outros imaginando a utopia de "todas as pessoas vivendo em paz, partilhando o mundo sem necessidade de ganância ou fome, uma irmandade de seres humanos".

Ao final da sequência, as pessoas se cumprimentam, se abraçam, antes de nos sentarmos. Conversamos então um pouco sobre o que foi vivenciado, com as pessoas ficando livres para falarem na ordem em que quiserem. Quando ninguém tem mais nada a dizer, encerra-se a atividade.

Existem alguns critérios para a seleção de músicas. De maneira geral, músicas mais orgânicas, não polêmicas, e que estejam relacionadas às emoções que se deseja vivenciar. Quem quiser mais detalhes a respeito dessa escolha, pode ler o artigo "Critérios para a seleção de música em Biodanza", de Maria Tereza Búrigo Marcondes Godoy, que está disponível a partir da página 136 desse pdf: https://www.pensamentobiocentrico.com.br/content/edicoes/pensamento_biocentrico_09.pdf

*

Uma das aulas mais prazerosas que tive como professor foi inteirinha com músicas. Com uma semana de antecedência, pedi que cada aluni escolhesse e me informasse uma música de que eli gostasse e que poderia usar um dia como professor em alguma aula. Montei então a lista de músicas para a aula da Rádio Didática. Simulamos um programa de rádio em que eu começava como apresentador e entrevistador, convidando umi dis alunis. Ficávamos na frente da sala enquanto is demais alunis formavam um semicírculo que era quase um círculo inteiro. Primeiro eu perguntava como i convidadi começou a gostar de música em geral. Depois eu pedia pra eli falar um pouco da música que tinha escolhido e nós ouvíamos a música. Por fim, o entrevistado falava de como usaria aquela música em uma aula. Então eu, como apresentador entrevistador, saía de cena e a pessoa que havia sido entrevistada se tornava apresentadora entrevistadora, convidando umi novi aluni para ser entrevistadi, seguindo a mesma estrutura de perguntas com alguma pequena variação.

Apesar da qualidade e da variedade da seleção musical e das aulas pensadas a partir das músicas, após algumas entrevistas senti que estava ficando meio chato, monótono, com apenas duas pessoas participando de cada vez. Resolvi então, da plateia, "ligar" para o programa:

— Trim... trim...

A apresentadora da vez demorou um pouco para entender mas "atendeu o telefone".

— Alô, aqui é da Rádio Didática. Quem está falando?

— Meu nome é Eduardo. Estou adorando o programa. Posso fazer uma pergunta para a entrevistada?

— Claro, querido ouvinte.

E assim a Rádio Didática se tornou mais interativa, com perguntas e respostas ainda mais interessantes. Uma outra apresentadora até inventou que haveria o sorteio de um gelágua entre os ouvintes que ligassem. Uma diversão!

Umi ouvinte perguntou se poderia ir até o estúdio da rádio. Outris ouvintes gostaram da ideia e houve uma "invasão" à rádio na última entrevista. Como a música selecionada era dançante, o estúdio, a sala de aula se transformou numa pista de dança com todis dançando.

Esse foi para mim o exemplo de uma aula perfeita: o conteúdo (uso da música como recurso didático) sendo não apenas discutido mas vivenciado, e não apenas intelectualmente mas fisicamente, com bom humor, com alegria, com participação. Tudo de bom!

*

Outra experiência marcante que tive com o uso de música não foi em educação formal, mas num minicurso que eu mesmo montei para estudar espanhol com esposa, tia e irmã bem antes de eu me tornar professor de Didática

Nos meus tempos de adolescente, quando eu fazia cursos de inglês, as aulas de que eu mais gostava eram as que tinham música. Mas eram aulas raras, uma ou duas vezes por ano. Eu ficava que nem minha aluna de Didática: deveria ter música todo dia. Então resolvi montar esse minicurso para aprendermos espanhol apenas usando músicas.

Eu preparava as aulas selecionando uma canção por semana. Nós primeiros ouvíamos a canção ou, às vezes, víamos um videoclip da música. Depois trabalhávamos com a letra impressa. Em seguida, líamos a letra. Por fim, cantávamos. O detalhe é que, na primeira aula, toda a letra vinha impressa, mas, a partir da segunda aula, as palavras que já conhecíamos das canções anteriores eram substituídas por uma lacuna sublinhada que deveria ser preenchida por nós. Ou seja, na medida em que avançávamos, havia mais e mais lacunas a serem preenchidas . A cada aula, praticávamos as quatro modalidades do aprendizado da língua: audição, escrita, leitura e fala. Quando trabalhávamos a letra, conversámos também sobre questões gramaticais, identificando proximidades e diferenças entre o português e o espanhol.

Estudamos umas vinte músicas assim e foi um aprendizado muito efetivo e prazeroso.

*

E, finalizando, para quem ficou com curiosidade, a música, a cantiga de ninar pela qual a querida aluna da Pedagogia perguntou quando nos reencontramos na UFC é assim: "Já é hora de dormir / E eu vou cantar / Pro amor que eu encontrei / Sem procurar / Pois a vida é mesmo assim / É o que é / Trouxe você de presente para mim". Quando me sinto muito emotivo ao final de um semestre, gosto de cantar essa música de minha própria autoria para algumas turmas.

E você já usou ou usa música em sua sala de aula? Como você faz isso?

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

SENTIMENTOS NA SALA DE AULA (Didaticx 02)

Neste texto, uso a letra "i" como recurso de linguagem neutra.

Costumo começar a aula com uma roda de sentimentos. Peço que todis is alunis se levantem e formem comigo um círculo no centro da sala. Dependendo do tamanho da sala e da quantidade de alunis, ficamos encostadis nas paredes. Apenas isso já é um excelente diagnóstico da qualidade educacional do ambiente: uma sala em que não é possível formar um círculo com todas as pessoas presentes não é um bom espaço para se ensinar e aprender.

Na roda de sentimentos da primeira aula, is alunis se entreolham e parecem relutantes. Às vezes acontece de fazerem um semicírculo: ninguém se aproxima de mim. Eu brinco dizendo que não mordo, quer dizer, mordo mas já jantei. Com o passar das aulas, a formação da roda é quase instantânea.

O simples fato de estar de pé sem nenhum acessório (principalmente celular) nas mãos, já é um primeiro passo importante no sentido de cada estudante estar realmente presente na sala de aula. A formação da roda é um exercício de concentração, literalmente: is estudantes formam a circunferência de um círculo ao redor de um centro vazio.

Na roda de sentimentos, cada um fala o que está sentindo naquele momento. Em sua versão mais, simples, o sentimento em uma única palavra. Geralmente eu começo, para exemplificar como funciona e para que is alunis tenham mais confiança para compartilhar seus sentimentos. Eu digo meu nome e falo o sentimento do momento. Em seguida, falo o nome da pessoa à minha esquerda e peço a ela que identifique e fale qual o seu sentimento. E assim segue até que todas as pessoas tenham falado. Se alguém chega atrasadi, entra na roda e participa normalmente quando chegar a sua vez.

A identificação do sentimento nem sempre é fácil. Tem pessoas que respondem "pensativa" ou "com fome" ou "cansada". Nesses casos, eu pergunto, respectivamente: "Qual o sentimento desse seu estado pensativo?", "O que você sente por estar com fome?", "Você está cansada fisicamente ou emocionalmente?"

Com o passar das aulas, is alunis identificam mais rápida e precisamente os sentimentos, e se sentem mais à vontade para compartilhá-los. 

*

Depois de algumas rodas de sentimento básicas, quando os estudantes pegaram o jeito, começo então a variar, tanto para manter o interesse quanto para aprofundar a percepção do sentimento e sua partilha com o grupo.

Algumas variações...

Como is estudantes se sentiam ao acordar, qual o sentimento predominante durante o dia e como estão se sentindo agora.

Como is estudantes se sentiram ontem e como acham que se sentirão amanhã.

O que deixou is estudantes animados durante o dia.

Como is estudantes gostariam que a turma se sentisse a respeito delis hoje. 

Como is estudantes se sentem ao saber que a aula de hoje é sobre [assunto da aula].

Qual o sentimento mais antigo que is estudantes lembram de ter tido.

Umi estudante diz seu sentimento e a pessoa seguinte conta rapidamente uma situação em que também sentiu aquilo.

Umi estudante tenta expressar facialmente seu sentimento, sem palavras, e a pessoa seguinte diz o que a pessoa parece estar sentindo.

No final do semestre, como is estudantes se sentiram no primeiro dia de aula e como estão se sentindo agora.

São infindáveis as formas para permitir que is estudantes identifiquem e compartilhem seus sentimentos. Algumas vezes, peço que algumi aluni conduza a roda de sentimentos, criando sua própria forma de fazê-la.

Certa vez, encontrei um ex-aluno num shopping. Ele me falou que, mesmo já passados dois anos de que ele fizera a disciplina de Didática, ainda se perguntava todo dia: "O que você está sentindo agora?".

Interagimos constantemente com outras pessoas e é muito importante estarmos conscientes de nossos próprios sentimentos. Umi professori que não sabe o que está sentindo pode "descontar" um sentimento negativo em algumi aluni. Ou então, numa euforia de sentimento positivo, pode subestimar a dor ou a dificuldade que umi estudante esteja sentindo. Ter consciência dos sentimentos facilita nossa interação social e melhora o clima das aulas.

Às vezes, aprofundo um pouco mais essa dimensão afetiva numa sequência de seis aulas em que divido is estudantes em duplas e peço que elis respondam umis para is outris seis perguntas por aula, totalizando "as 36 perguntas que levam ao amor" (The 36 Questions That Lead to Love - https://www.nytimes.com/2015/01/09/style/no-37-big-wedding-or-small.html). Se is estudantes estão em número ímpar, eu faço par com umi delis. Algumas perguntas são parecidas, mas como eu mudo a dupla de uma aula para outra, funciona bem.

Eis a lista de perguntas...

1. Se fosse possível escolher qualquer pessoa no mundo, quem você gostaria de convidar para jantar?

2. Você gostaria de ser famoso(a)? De que maneira?

3. Antes de fazer uma ligação, você costuma ensaiar o que vai dizer? Por quê?

4. O que seria um dia “perfeito” para você?

5. Quando foi a última vez que você cantou para si mesmo? E para outra pessoa?

6. Se você pudesse viver até a idade de 90 e manter a mente ou o corpo de uma pessoa de 30 nos últimos 60 anos de sua vida, o que você preferiria?

7. Você tem um palpite secreto sobre como vai morrer?

8. Cite três coisas que você e sua dupla parecem ter em comum.

9. Pelo que em sua vida você se sente mais grato(a)?

10. Se você pudesse mudar alguma coisa na maneira como foi criado(a), o que seria?

11. Dedique quatro minutos e conte para sua dupla a história de sua vida com o máximo de detalhes possível.

12. Se você pudesse acordar amanhã tendo adquirido alguma qualidade ou habilidade, qual seria?

13. Se uma bola de cristal pudesse lhe contar a verdade sobre você, sua vida, o futuro ou qualquer outra coisa, o que você gostaria de saber?

14. Existe algo que você sonha em fazer há muito tempo? Por que você não fez isso ainda?

15. Qual é a maior conquista da sua vida?

16. O que você mais valoriza em uma amizade?

17. Qual é a sua memória mais preciosa?

18. Qual é a sua memória mais terrível?

19. Se você soubesse que em um ano morreria repentinamente, mudaria alguma coisa na maneira como está vivendo agora? Por quê?

20. O que amizade significa para você?

21. Que papéis o amor e o afeto desempenham em sua vida?

22. Fale algo que você considera uma característica positiva de sua dupla. Alternem até terem compartilhado cinco características cada um.

23. Quão unida e afetuosa é sua família? Você acha que sua infância foi mais feliz do que a da maioria das outras pessoas?

24. Como você se sente a respeito de seu relacionamento com sua mãe?

25. Façam, cada um, três afirmações verdadeiras começando por “nós”. Por exemplo, "Nós dois estamos nesta sala sentindo..."

26. Complete esta frase: "Eu gostaria de ter alguém com quem pudesse compartilhar..."

27. Se você fosse se tornar um(a) amigo(a) íntimo(a) de sua dupla, compartilhe o que seria importante para ele(a) saber.

28. Diga à sua dupla o que você gosta nele(a); seja muito honesto desta vez, dizendo coisas que você não pode dizer a alguém que acabou de conhecer.

29. Compartilhe com sua dupla um momento embaraçoso em sua vida.

30. Quando foi a última vez que você chorou na frente de outra pessoa? E sozinho(a)?

31. Diga a sua dupla algo que você já gosta nele(a).

32. O que é sério demais para se brincar a respeito?

33. Se você morresse esta noite sem oportunidade de se comunicar com ninguém, o que mais se arrependeria de não ter contado a alguém? Por que você ainda não contou?

34. Sua casa, contendo tudo o que você possui, pega fogo. Depois de salvar seus entes queridos e animais de estimação, você tem tempo para fazer uma corrida final com segurança para salvar qualquer item. O que seria? Por quê?

35. De todas as pessoas em sua família, a morte de quem consideraria mais perturbadora? Por quê?

36. Compartilhe um problema pessoal e peça o conselho de sua dupla sobre como você pode lidar com isso. Além disso, peça a sua dupla que reflita sobre como você parece estar se sentindo a respeito do problema que escolheu.

Como algumas duplas são mais rápidas que outras, vou fazendo pequenas modificações no enunciado das perguntas que estão na lousa para que quem já respondeu todas as perguntas tenha novas perguntas para responder. Por exemplo, na pergunta 24, "Como você se sente a respeito do seu relacionamento com sua mãe", eu troco "mãe" por "pai". Uso um pincel de outra cor para facilitar a identificação das modificações. Quando todas as duplas responderam pelo menos as seis perguntas originais, eu encerro a atividade.

Certa vez, uma aluna falou que estava curiosa para saber as respostas das outras pessoas além da dupla dela. Experimentamos então fazer algumas perguntas e todis (ou aquelis que desejassem) responderam para o grupão. Funcionou bem também. No ensino remoto, usei algumas vezes essas respostas coletivas. E, no final, pedia que algumis alunis também formulassem perguntas para que todis respondessem. Essas variações sempre são importantes em Didática.

*

Fiz formação de facilitador num caminho de autoconhecimento e espiritualidade chamado Pathwork. Lá conheci uma técnica chamada Revisão Diária que consiste na identificação de situações desconfortáveis e das reações emocionais que se seguem a elas. Elaborei uma versão ampliada para utilizar nos grupos de estudo que eu conduzia. Recentemente, comecei a usar essa revisão diária ampliada, que chamo de Lavando a Alma, em algumas aulas. É mais ou menos assim.

Falo que, por meio da roda no início da aula, temos identificado nossos sentimentos, mas que também é possível transformá-los, principalmente os sentimentos negativos. Pergunto então quem gostaria de se voluntariar para experimentar.

Com a pessoa voluntária, percorro cinco passos, que são registrados por escrito na lousa, em cinco colunas. Eu mesmo registro ou peço a outri aluni que faça isso. 

Primeiro passo: situação desconfortável. A pessoa voluntária identifica, no dia atual ou anterior, três ou quatro situações desconfortáveis por que passou. Por exemplo: "Discuti com meu gerente", "Perdi o ônibus e cheguei atrasada na aula" ou "Terminei meu namoro". É importante que seja uma frase curta que descreva sinteticamente a situação. Depois ela escolhe uma dessas situações para ser trabalhada no Lavando a Alma. Por exemplo: "Discuti com meu gerente".

Segundo passo: reações emocionais. A pessoa indica a primeira emoção que sentiu quando a situação aconteceu. Nesse caso, poderia ser "raiva". Uma emoção é suficiente, principalmente quando a pessoa identifica corretamente. Às vezes, é difícil identificar a reação emocional original, então podemos listar dois ou três sentimentos. Nas fases seguintes, ficará mais claro qual deles é o mais fundamental.

Terceiro passo: conclusões errôneas. Esse é um momento muito importante de desabafo. A pessoa deve soltar o verbo e dizer os pensamentos movidos pelo sentimento identificado no item anterior. Por exemplo, no caso da raiva pela discussão com o gerente, a pessoa poderia dizer o seguinte: "Ele sempre faz isso, me cobra por algo que não pediu direito. Ele é um idiota. Deveria ser despedido. Já estou de saco cheio. Eu quero é que ele suma, sofra um acidente grave, morra. Não aguento mais. Da próxima vez, peço demissão." É importante que a pessoa fale até que sinta que desengasgou ou tirou um peso de dentro de si.

Quarto passo: ponto de vista alternativo. Nesse momento, convido a pessoa a ouvir imaginariamente alguém sábio que ela conhece (pode ser umi amigi ou alguma entidade espiritual, caso a pessoa seja religiosa). A ideia é dar à pessoa uma nova perspectiva que lhe permitirá ver a situação de maneira diferente. Eu então leio cada frase do item anterior e a pessoa escuta essa voz mais sábia e me diz o que ouviu. Por exemplo, respectivamente, "Às vezes, o seu gerente não se comunica muito bem, todos estamos sujeitos a errar assim também. Ele é uma pessoa como você que talvez esteja sofrendo algum tipo de pressão também. Pode ser mesmo que ele tenha medo de ser demitido e seja mais rígido do que deveria. Quando sentir que está começando a encher o saco, peça licença para ir ao banheiro por um momento. É melhor que a situação se resolva e não que o seu gerente suma, se machuque ou morra. Sei que está difícil, mas, depois de uma boa noite de sono, tente ver o que pode fazer para melhorar a situação: talvez conversar com sis colegas para pensarem juntos numa solução. Neste momento, pedir demissão talvez lhe cause mais problemas do que enfrentar a situação." É importante que cada conclusão errônea do item anterior seja conversada e que a voz sábia seja realmente sábia, ou seja, não alimente a emoção negativa original. Por exemplo, uma voz sábia não diria: "é isso mesmo, ele é um idiota, ignora ele e siga em frente".

Quinto passo: intenções positivas. Para finalizar, em poucas frases a pessoa deve formular uma intenção para quando a mesma situação ou uma situação similar se repetir. Ela pode usar algo que a voz sábia falou como inspiração. Por exemplo: "quando meu gerente me fizer uma cobrança que eu considero excessiva, vou pedir a ele um minutinho para ir no banheiro antes de continuarmos e, na volta, vou pedir pra ele que me detalhe um pouco melhor o que quer e que me dê um prazo razoável para cumprir a obrigação".

Da próxima vez que situação similar se apresentar, a pessoa terá melhores condições de lidar com ela. Lavando a Alma desse jeito muitas e muitas vezes, a pessoa também pode descobrir certos padrões emocionais que são comuns a várias situações e assim, pelo autoconhecimento, melhorar sua maneira de enfrentar os vários desconfortos cotidianos por que passa.

Quando as pessoas têm resistência a se voluntariar, eu uso uma situação desconfortável do meu próprio dia como exemplo. Vendo eu mesmo me expor, algumas pessoas se sentem mais confiantes para se expor também.

*

A roda de sentimentos costuma ser breve, 2 a 10 minutos. As 6 perguntas e a lavagem da alma levam perto de meia hora. Geralmente dedico 20% do horário total da aula para trabalhar diretamente com sentimentos. O retorno em bem-estar e engajamento é maravilhoso.

Foi nessas atividades referentes a sentimentos que descobri que muitis estudantes tinham transtorno de ansiedade, depressão, déficit de atenção, síndrome de pânico, dificuldades de relacionamento, problemas familiares... e também paixões, encantamentos, sonhos, realizações... Esse conhecimento me permite planejar melhor minhas aulas e atender melhos mis alunis.

E você, professori, costuma trabalhar sentimentos em sala de aula? Como?