Neste texto, uso a letra "i" como recurso de linguagem neutra.
E como há muitas canções, fiz também uma leitura para quem quiser ouvir as melodias. Está neste link: https://drive.google.com/file/d/1nJwlMRa9JLCY4401jolpoYBqrwXv1IJr/view?usp=sharing
Talvez você, que acompanha o Didaticx desde o primeiro texto, esteja se perguntando:
— Mas o Eduardo não dá aula, não? Fica só enrolando? Cadê o conteúdo?
Compreendo a preocupação di leitori, e já no próximo texto falarei de conteúdo, mas peço, com o Lenine, um pouco mais de paciência: "Enquanto o tempo acelera e pede pressa / Eu me recuso, faço hora, vou na valsa / A vida é tão rara".
Hoje quero falar com você a respeito de música. Parece meio óbvio: todo mundo gosta de música, então a música deveria estar em todo lugar, inclusive numa sala de aula. Mas até eu, que amo música, demorei pra começar.
Luiza, minha saudosa e querida mestra e amiga, levava música para a sala de aula: tocava e comentava discos, às vezes cantávamos. Mas de algum modo eu achava que aquilo era porque a disciplina se chamava "A arte na História".
Quando comecei a dar aulas de Didática em 2014, após alguns anos distante da universidade, certa vez resolvi cantar com as pessoas que estavam esperando dar a hora de começar a aula na turma de Pedagogia. Peguei uma canção que a Luiza tinha nos ensinado naquela disciplina, uma pequena canção em latim: "Pauper sum ego / Nihil habeo / Cor meum dabo" (Eu sou pobre / Nada tenho / Dou meu coração). Todos gostamos da experiência e passamos a cantar outras músicas quando chegávamos cedo, antes das 18h30. Na outras turmas, eu cantava de vez em quando também.
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Quando dei aulas na UECE, de 2017 a 2019, não costumávamos cantar, embora a música aparecesse vez ou outra.
Certa vez, na disciplina de Metodologia do Trabalho Científico, ouvimos a música "O segundo sol", do Nando Reis: "Quando o segundo sol chegar / Para realinhar as órbitas dos planetas / Derrubando com assombro exemplar / O que os astrônomos diriam se tratar / De um outro cometa". Assistimos um vídeo em que o compositor contava a história da música. E conversamos sobre os vários tipos de conhecimento: científico, filosófico, religioso e artístico.
Em outra ocasião, fizemos uma vivência biocêntrica, em que dançamos uma sequência de cinco músicas trabalhando a relação individual-coletivo. Falarei mais da Educação Biocêntrica adiante.
Também pedi que os estudantes fizessem um jingle para "Didática Geral".
E tocamos e cantamos na confraternização do último dia de aula em algumas turmas.
A música estava por ali, timidamente pedindo passagem.
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No segundo semestre de 2019, já de volta na UFC, novamente como professor substituto, reencontrei nos corredores uma querida aluna daquele tempo de cantar antes da aula na turma de Pedagogia, e a primeira coisa que ela perguntou foi:
— Como era aquela música que a gente cantava?
— Qual música?
— Uma cantiga de ninar...
A conversa ativou lembranças e resolvi cantar na aula que daria na sequência, também no curso de Pedagogia. "Pauper sum ego", claro. Dessa vez, não antes da aula, mas durante a aula mesmo, logo após a roda de sentimentos. Coloquei a letra na lousa e desafiei is alunis a traduzirem. Eu ia cutucando, dando dicas: "Qual dessas palavras vocês conhecem? 'Ego'? O que quer dizer 'ego'? 'Eu'? Muito bom, já temos nossa primeira palavra. E 'pauper'? Nós usamos algo parecido com 'pauper' em português? Alguém lembra? Isso, 'paupérrimo'. Que quer dizer? "Muito pobre", bom. Então 'pauper' é... 'pobre', isso". Então temos 'pobre sum eu'. O que quer dizer 'sum'?" E assim seguimos até traduzir tudo.
Depois pedi que todis se levantassem e fizessem um semicírculo. Comecei a ensinar a melodia, frase por frase. Repetindo, repetindo, repetindo. Vozes tímidas. Repetindo, repetindo, repetindo. Eu chegava pertinho de cada pessoa pra ouvir se estava certo, se precisava de algum apoio. Repetindo, repetindo, repetindo, até conseguirmos cantar todos juntos. Uma beleza! Tão bom o som de uma sala de aula cheia de música feita pela gente mesmo!
Ao final, uma aluna que falou que estava triste durante a roda de sentimentos, disse assim, bem mais animada:
— Professor, a gente devia fazer isso toda aula.
Eu olhei em volta e percebi as expressões de concordância dis demais alunis. A música tinha tocado cada umi de nós. Combinamos então de cantar no início de cada aula, após a roda de sentimentos. E resolvi levar a novidade também para as outras turmas de licenciatura, que misturavam estudantes de vários cursos.
Cantamos "Funga-funga" ("Eu sou o Funga Funga / E sou um pouco diferente / Mas não entendo por que todo mundo / Me olha como se eu não fosse gente"), "Minha ciranda" ("Minha ciranda não é minha só / Ela é de todos nós"), "Frère Jacques" ("Frère Jacques / Frère Jacques / Dormez-vous? / Dormez-vous?"), "Canção do mestre" ("Mestre é quem um tanto ensina e um tanto mesmo aprende"), "Row your boat" ("Row, row, row your boat / Gently down the stream / Merrily merrily, merrily, merrily / Life is but a dream") , "Mané Pipoca" ("M a ma / N e né / Mané / P i pi / Mané pi / P o po / Mané pipo / C a ca / Mané pipoca"), "Tindolelê" ("Oi abre a roda tindolelê / Oi abre a roda tindolalá"), "Já é hora de dormir"...
Foi incrível! Como nosso humor melhorava! Como nos conectávamos!
No semestre seguinte, começamos cantando. Já era essencial à minha didática. Mas eis que chegou a pandemia e carregou a cantoria pra lá. É de cantar juntos que sinto mais falta nas aulas presenciais. As aulas remotas, com o pequeno atraso na transmissão, torna a experiência de cantar juntos um suplício sonoro. Fiquei tão bloqueado musicalmente que nem consegui criar uma alternativa. Nada que eu pensava me parecia tão bom quanto cantarmos juntos. Essa foi uma das minhas falhas durante a pandemia: não ter dado um jeito de manter a música como atividade diária nas disciplinas.
Mas voltemos um pouco a 2019-2020 porque ainda quero contar algumas coisas de música e... dança.
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A disciplina de Didática na Pedagogia tem carga horária dobrada em relação às demais licenciaturas: são duas aulas por semana. Resolvi então fazer o seguinte. Uma das aulas da Pedagogia teria o mesmo planejamento da aula semanal das demais licenciaturas. A outra aula seria completamente vivencial e experimental.
No início dessa segunda aula, eu retomava a canção que havíamos aprendido na primeira aula da semana, dividia a turma em pequenos grupos e pedia que cada grupo criasse uma coreografia para a canção. Depois cada grupo ensinava a sua coreografia para toda a turma. Quanta criatividade! Quanta alegria! Cantávamos e dançávamos nas sextas-feiras à noite. "Sextou Didática", como repetiam alguns alunis.
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Depois das coreografias, fazíamos algumas vivências biocêntricas.
A Educação Biocêntrica é uma abordagem pedagógica desenvolvida por Ruth Cavalcante e Cezar Wagner de Lima Gois que combina o princípio biocêntrico da Biodança de Rolando Toro com a educação dialógica de Paulo Freire com a teoria da complexidade de Edgard Morin. Fiz uma especialização em Educação Biocêntrica entre 2015 e 2017, e essa aula extra da Pedagogia foi a oportunidade ideal para colocar muita coisa em prática.
Eu escolhia uma sequência de músicas para trabalhar uma ou mais linhas de vivência da Educação Biocêntrica. Essas linhas compreendem: vitalidade, afetividade, criatividade, sexualidade e transcendência.
Vou dar um exemplo de uma dessas sequências. Cada música é precedida por uma "consigna", uma pequena fala afetiva que estabelece o sentido do exercício e dá instruções sobre como realizá-lo. Essa consigna é dada, geralmente, com todos em círculo, mas também pode acontecer das pessoas ouvirem de onde estavam quando a música anterior acabou. Muitas vezes, principalmente se o exercício é individual ou em duplas, quem está conduzindo a atividade também coloca a música por uns 30 segundos e dança exemplificando como o exercício deve ser feito, chamando um voluntário caso o exercício seja em dupla. Abaixo vou indicar também algumas palavras-chave que orientam a consigna.
Andar com fé (composição de Gilberto Gil na interpretação dele mesmo). Individualidade e vitalidade. Nós muitas vezes chegamos cansados para a aula. Até desesperançados. Na vida, é importante a gente recuperar nossa força, nossa confiança na gente mesmo e em algo maior que a gente. Vamos então dançar caminhando com fé. Passos firmes, cabeça erguida. "Nem besta nem abestado", nem com queixo empinado nem com a cabeça baixa, como diz Nininha Militão. Tomando cuidado para não bater nos outros, mas com determinação. É uma dança solitária para fortalecer a individualidade, então não se junte a ninguém. Apenas dance caminhando, recuperando sua vitalidade e fé.
Se enamora (composição de Edgard Poças, Garofalo, Giannino Gastaldo, Monti e Vicenzo Giuffre na interpretação d'A Turma do Balão Mágico). Encontro e afetividade. Em nossa caminhada individual, a gente encontra pessoas, sente curiosidade, se aproxima, convive, depois se afasta mas já tendo estabelecido uma relação que pode gerar futuros reencontros. Escolha então um par para dançar a próxima música (as pessoas formam pares). Esses pares vão caminhar, dançar juntos, como se fosse um passeio, de mãos dadas, braço na cintura ou outra maneira que criem. Após um certo tempo, quando eu indicar, você se despede brevemente de seu par, com um abraço ou outra saudação, evitando falar para não perder a concentração, e busca formar um novo par para continuar caminhando e dançando.
Struggle for pleasure (composição instrumental e interpretação de Wim Mertens). Estabelecimento de limites. Nos encontros com os outros, estamos sujeitis a invadir ou ser invadidis, perdendo dimensões significativas da nossa individualidade. É importante então estabelecermos limites. Com o par com o qual você terminou a música anterior, você vai dançar com as mãos espalmadas umi di outri se tocando e os pés de cada umi plantados no chão. Os pés quase não se movem enquanto as mãos tentam avançar na direção da outra pessoa, mas sem empurrar com força excessiva. Mantenha sempre o contato visual com o outro. Às vezes uma mão avança enquanto outra recua. Você avança até onde a outra pessoas der o limite. E você dá o limite quando sente que a pressão da outra pessoa está muito forte. Busquem uma harmonia, um equilíbrio nesse movimento de dança. Quando eu der o sinal, você se despede do seu par e procura um novo, da mesma forma que fez na música anterior.
Minha ciranda (composição de Lourenço da Fonseca Barbosa na interpretação de Lia de Itamaracá). Coletividade e solidariedade. Além do encontro umi a umi temos também o encontro de todis, da coletividade, da comunidade, em que dançamos mais próximis, dando sustentação umis ais outris, exercendo a solidariedade. Vamos dançar em círculo uma ciranda, de mãos dadas. Durante a dança, troque olhares com várias pessoas, reconhecendo cada pessoa que está na roda como alguém que dança, trabalha e estuda com você.
Imagine (composição e interpretação de John Lennon). Acolhimento e união. Para finalizar, vamos estreitar o círculo, nos abraçando pela cintura com o sentimento de acolhimento e de união. Os pés nem saem do chão, o corpo apenas balança lentamente, pra lá e pra cá. Olhemos uns nos olhos dos outros imaginando a utopia de "todas as pessoas vivendo em paz, partilhando o mundo sem necessidade de ganância ou fome, uma irmandade de seres humanos".
Ao final da sequência, as pessoas se cumprimentam, se abraçam, antes de nos sentarmos. Conversamos então um pouco sobre o que foi vivenciado, com as pessoas ficando livres para falarem na ordem em que quiserem. Quando ninguém tem mais nada a dizer, encerra-se a atividade.
Existem alguns critérios para a seleção de músicas. De maneira geral, músicas mais orgânicas, não polêmicas, e que estejam relacionadas às emoções que se deseja vivenciar. Quem quiser mais detalhes a respeito dessa escolha, pode ler o artigo "Critérios para a seleção de música em Biodanza", de Maria Tereza Búrigo Marcondes Godoy, que está disponível a partir da página 136 desse pdf: https://www.pensamentobiocentrico.com.br/content/edicoes/pensamento_biocentrico_09.pdf
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Uma das aulas mais prazerosas que tive como professor foi inteirinha com músicas. Com uma semana de antecedência, pedi que cada aluni escolhesse e me informasse uma música de que eli gostasse e que poderia usar um dia como professor em alguma aula. Montei então a lista de músicas para a aula da Rádio Didática. Simulamos um programa de rádio em que eu começava como apresentador e entrevistador, convidando umi dis alunis. Ficávamos na frente da sala enquanto is demais alunis formavam um semicírculo que era quase um círculo inteiro. Primeiro eu perguntava como i convidadi começou a gostar de música em geral. Depois eu pedia pra eli falar um pouco da música que tinha escolhido e nós ouvíamos a música. Por fim, o entrevistado falava de como usaria aquela música em uma aula. Então eu, como apresentador entrevistador, saía de cena e a pessoa que havia sido entrevistada se tornava apresentadora entrevistadora, convidando umi novi aluni para ser entrevistadi, seguindo a mesma estrutura de perguntas com alguma pequena variação.
Apesar da qualidade e da variedade da seleção musical e das aulas pensadas a partir das músicas, após algumas entrevistas senti que estava ficando meio chato, monótono, com apenas duas pessoas participando de cada vez. Resolvi então, da plateia, "ligar" para o programa:
— Trim... trim...
A apresentadora da vez demorou um pouco para entender mas "atendeu o telefone".
— Alô, aqui é da Rádio Didática. Quem está falando?
— Meu nome é Eduardo. Estou adorando o programa. Posso fazer uma pergunta para a entrevistada?
— Claro, querido ouvinte.
E assim a Rádio Didática se tornou mais interativa, com perguntas e respostas ainda mais interessantes. Uma outra apresentadora até inventou que haveria o sorteio de um gelágua entre os ouvintes que ligassem. Uma diversão!
Umi ouvinte perguntou se poderia ir até o estúdio da rádio. Outris ouvintes gostaram da ideia e houve uma "invasão" à rádio na última entrevista. Como a música selecionada era dançante, o estúdio, a sala de aula se transformou numa pista de dança com todis dançando.
Esse foi para mim o exemplo de uma aula perfeita: o conteúdo (uso da música como recurso didático) sendo não apenas discutido mas vivenciado, e não apenas intelectualmente mas fisicamente, com bom humor, com alegria, com participação. Tudo de bom!
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Outra experiência marcante que tive com o uso de música não foi em educação formal, mas num minicurso que eu mesmo montei para estudar espanhol com esposa, tia e irmã bem antes de eu me tornar professor de Didática
Nos meus tempos de adolescente, quando eu fazia cursos de inglês, as aulas de que eu mais gostava eram as que tinham música. Mas eram aulas raras, uma ou duas vezes por ano. Eu ficava que nem minha aluna de Didática: deveria ter música todo dia. Então resolvi montar esse minicurso para aprendermos espanhol apenas usando músicas.
Eu preparava as aulas selecionando uma canção por semana. Nós primeiros ouvíamos a canção ou, às vezes, víamos um videoclip da música. Depois trabalhávamos com a letra impressa. Em seguida, líamos a letra. Por fim, cantávamos. O detalhe é que, na primeira aula, toda a letra vinha impressa, mas, a partir da segunda aula, as palavras que já conhecíamos das canções anteriores eram substituídas por uma lacuna sublinhada que deveria ser preenchida por nós. Ou seja, na medida em que avançávamos, havia mais e mais lacunas a serem preenchidas . A cada aula, praticávamos as quatro modalidades do aprendizado da língua: audição, escrita, leitura e fala. Quando trabalhávamos a letra, conversámos também sobre questões gramaticais, identificando proximidades e diferenças entre o português e o espanhol.
Estudamos umas vinte músicas assim e foi um aprendizado muito efetivo e prazeroso.
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E, finalizando, para quem ficou com curiosidade, a música, a cantiga de ninar pela qual a querida aluna da Pedagogia perguntou quando nos reencontramos na UFC é assim: "Já é hora de dormir / E eu vou cantar / Pro amor que eu encontrei / Sem procurar / Pois a vida é mesmo assim / É o que é / Trouxe você de presente para mim". Quando me sinto muito emotivo ao final de um semestre, gosto de cantar essa música de minha própria autoria para algumas turmas.
E você já usou ou usa música em sua sala de aula? Como você faz isso?