quarta-feira, 27 de outubro de 2021

ENCENANDO MEMÓRIAS DE AULAS E PROFESSORIS MARCANTES (Didaticx 05)

Neste texto, uso a letra "i" como recurso de linguagem neutra.

Já falei do início de cada aula, com rodas de sentimento e canto coletivo. E do final de cada aula, com a reflexão a partir da ficha de observação. São as partes mais fixas das aulas, embora haja variações de dia para dia. É muito importante a busca desse equilíbrio entre repetição e variedade na Didática. Repetição para dar segurança. Variedade para manter a motivação. 

A partir deste episódio, vou contar o que acontece no meio de cada aula: uma atividade interativa sempre variada. "Atividade" porque is alunis são ativis e não apenas ficam recebendo passivamente aquilo que poderia ser transmitido pelo professor. E "interativa" porque agem umis com is outris, não apenas comigo, professor. Essas atividades estão relacionadas ao conteúdo da disciplina, às vezes mais diretamente, outras vezes mais indiretamente. Com a reflexão a partir da ficha de observação, não é necessário explicitar o conteúdo que está sendo tratado em cada atividade interativa. Essas atividades estão relacionadas principalmente aos objetivos da disciplina, que são muitos, mas no caso de Didática formulo burocraticamente assim: "Desenvolver uma didática multidimensional própria, baseada em experiências pessoais e sociais educativas e inspirada em concepções de ensino existentes". Numa formulação menos burocrática, o objetivo mais geral seria algo assim: "que is estudantes tenham vontade de ensinar e criem sua própria maneira de fazer isso".

Cada atividade interativa é uma potencial experiência memorável. Uma tentativa de criar um momento que ficará guardado na memória afetiva dis alunis e que eli poderá recuperar e adaptar para utilizar quando for professori. 

Uma história, que conheci pela Luiza, dará uma ideia melhor do que tento alcançar com cada atividade interativa. Chama-se "Janela sobre a memória (I)" e é de autoria do Eduardo Galeano...

À beira-mar de outro mar, outro oleiro se aposenta, em seus anos finais. 

Seus olhos se cobrem de névoa, suas mãos tremem: chegou a hora do adeus. Então acontece a cerimônia de iniciação: o oleiro velho oferece ao oleiro jovem sua melhor peça. Assim manda a tradição, entre os índios do noroeste da América: o artista que se despede entrega sua obra-prima ao artista que se apresenta.

E o oleiro jovem não guarda esta peça perfeita para contemplá-la e admirá-la: a espatifa contra o solo, a quebra em mil pedacinhos, recolhe os pedacinhos e os incorpora à sua própria argila.

Assim como recebi, espatifei e incorporei à minha prática as aulas da Luiza e de outros professores memoráveis, cada atividade interativa que proponho é como um vaso de barro que ofereço ais alunis para que elis possam espatifar, recolher os pedacinhos e incorporar à sua própria argila. E é isso que você, que está me lendo, também pode fazer. Não aplicar exatamente as atividades interativas que contarei, porque elas foram criadas para determinados contextos específicos, mas se inspirar nessas atividades e recombinar partes delas com partes de outras atividades que você já realiza.

Comecemos então...

*

Na primeira aula, geralmente, peço que cada aluni lembre de umi professori ou de uma aula que foi marcante, negativa ou positivamente, para si. Como a lembrança costuma vir quase imediatamente, dou apenas um ou dois minutos para isso. Embora eu também pudesse pedir que is estudantes registrassem por escrito, de maneira breve ou fazendo uma carta para essi professori.

Depois agrupo is alunis em quartetos (geralmente prefiro trios, mas para essa atividade é útil ter mais estudantes em cada grupo já que faremos encenações que talvez precisem de mais personagens). Para não reforçar as panelinhas naturais que há em toda sala, uso alguma técnica como a de contar o número de alunis, dividir por quatro para calcular o total de grupos, atribuir a cada aluni um número de 1 até o total de grupos e depois pedir que as pessoas que receberam o mesmo número se juntem. Dessa forma, as pessoas amigas, que geralmente sentam próximas, formarão grupo com pessoas que sentam longe delas. Por exemplo, se tenho 43 alunos, são 10 grupos (43 dividido por 4), atribuo o número 1 a umi aluni, 2 ai seguinte e assim por diante até 10, depois 1 novamente ai aluni seguinte, continuando assim até que todis tenham recebido um número. As pessoas que receberam 1 se juntam, as pessoas que receberam 2 se juntam... as pessoas que receberam 10 se juntam. Como a divisão não era exata, três dos grupos ficarão com uma pessoa a mais. Não tem problema. Quando forem chegando pessoas atrasadas, elas se juntam aos grupos já formados que têm menos gente.

Três coisas antes de continuarmos...

Primeiro, destaco a importância de quebrar as "panelinhas" e rejuntar os pedaços (pessoas) em outro grupo, outra obra de arte. A criação de um sentimento de turma, em que cada pessoa seja capaz de se comunicar com todas as outras pessoas, é muito importante. A aprendizagem personalizada, uma das grandes bandeiras da educação contemporânea, tem lá os seus méritos, mas é pela interação social que a educação pode ser realmente transformadora para cada pessoa, para o grupo social de que ela faz parte e para a sociedade como um todo. A individualidade deve ser respeitada e estimulada em sua expressão única, mas devemos combater o individualismo e a competição que são o espírito dessa nossa sociedade desigual. Fazer com que is alunis conheçam umis ais outris, conversem, interajam, é uma alta prioridade de tudo que planejo para a sala de aula.

Segundo, quando uma pessoa que chega atrasada vai entrar em um grupo, levo a pessoa até o grupo, apresento a pessoa  e peço que o grupo explique a atividade para a pessoa que está chegando. Dessa maneira, fico liberado para circular entre os grupos e também dou mais uma oportunidade para que is alunis ensinem umis ais outris. Em qualquer disciplina, isso seria útil. Numa disciplina de Didática, é sempre mais uma oportunidade de ensino.

Terceiro, pode parecer óbvio mas é bom garantir que is alunis, em cada grupo, estejam sentados de maneira que todis possam se ver e ouvir.

Então, em grupos, cada estudante vai contar para as outras pessoas qual a sua aula/professori marcante. Isso dura de 10 a 15 minutos. Em seguida, peço que cada grupo escolha uma das lembranças para encenar. O critério de escolha fica a cargo dis alunis. Dou então uns 10 minutos para que is alunis planejem a encenação, com uma única exigência: que o papel di professori seja desempenhado peli aluni que relatou aquela lembrança. Assim, i aluni terá a oportunidade de se colocar na pele di professori marcante. Depois, cada grupo apresenta sua encenação, que geralmente não dura mais que 5 minutos. Antes do início das encenações, talvez seja útil desfazer o formato dos grupos para que seja formada uma plateia, de preferência deixando as pessoas de cada grupo longe umas das outras para que elas não continuem planejando sua encenação sem prestar atenção em quem está encenando no momento.

As encenações costumam ser divertidas e emocionantes. Além de uma oportunidade para as pessoas tímidas se superarem e para as pessoas extrovertidas brilharem. Muitas vezes, tenho vontade de ter gravado não só essas encenações mas muitas outras atividades interativas, mas fico com medo de tirar o foco do principal, que é a experiência no presente. De todo modo, é algo a considerar no futuro.

Concluídas as encenações, fazemos um grande círculo e pergunto quem quer falar a respeito da experiência. A essa altura, is alunis geralmente estão animadis. Eu também. Quando ninguém tem mais nada a falar, ou se já é hora da ficha de observação, seguimos adiante na aula.

*

Você considera, nas suas aulas, as memórias que is alunis têm relacionadas ao conteúdo da sua disciplina? Essas memórias poderiam ser encenadas?

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