Neste texto, uso a letra "i" como recurso de linguagem neutra.
Foi uma tristeza que deu origem a muitas alegrias. No final do semestre 2018.1, quando eu dava aulas na UECE, percebi que vários de mis alunis não sabiam formular um objetivo em um planejamento didático. Era um conhecimento muito importante para futuris professoris. Fiquei triste. Triste mesmo. Muito triste.
Eu poderia ter seguido com culpas e desculpas: essis alunis não leram o texto, essis alunis faltaram ou chegaram atrasadis às aulas em que tratamos disso... Mas, na minha tristeza, eu só me perguntava:
— Tem alguma coisa que eu possa fazer? O quê?
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Numa de suas mais famosas citações, Paulo Freire diz que "ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção".
Nunca vi ninguém discordar dessa afirmação. Quase todo mundo acha linda. Mas colocar em prática é coisa bem diferente. A tentação de querermos transferir aquilo que aprendemos para nossis alunis é grande.
Aquilo que somos tentados a transferir é o que geralmente chamamos de conteúdo. Todo o sistema educacional é montado em torno dele. Tópicos e subtópicos de conteúdo para cada área do conhecimento. O que traz um livro didático, o recurso mais utilizado em nossa escolarização? Conteúdos. Muitos conteúdos.
Na universidade, nas disciplinas pedagógicas de formação de professores, geralmente não se usam livros didáticos que são seguidos capítulo por capítulo, mas existe a famosa "pasta na xerox", que não é outra coisa senão uma apostila, mais ou menos organizada de textos. Conteúdo, conteúdo, conteúdo.
Mas o sistema inteiro, baseado no conteúdo, parece não levar o conteúdo muito a sério. Para passar por média, precisa-se apenas de um 7,0. Uma pessoa que não aprende 30% do conteúdo ainda é considerada boa aluna. E, com uma prova final, ou depois de uma recuperação, i aluni pode seguir adiante tirando apenas 5,0, ou seja, sem saber 50%, metade, daquilo que deveria. Dos 100%, existe algo que é fundamental? Aparentemente não. E, mesmo que houvesse, tanto faz se no percentual que is alunis não aprenderam há ou não algo fundamental. Se o sistema fosse sério, is alunis só precisariam aprender o que é essencial, e teriam que aprender 100% do essencial. Então, se não podemos desconsiderar o sistema, pois precisamos, como professoris, do trabalho e is alunis precisam da escola como obrigação constitucional, pelo menos não devemos levar o sistema tão a sério.
*
Estava eu entre essa tristeza de que algumis alunis não estavam aprendendo algo muito básico, a dúvida sobre o que seria essencial que mis alunis aprendessem e o questionamento sobre como fugir do sistema sem sair completamente do sistema.
Foi quando lembrei de uma atividade que vinha fazendo nos dois últimos semestres: análise de cenas didáticas de filmes. Esse assunto merece um episódio inteiro do Didaticx, então, por enquanto, saiba apenas que nós assistíamos pequenos trechos de filmes (filmes comuns, comerciais) em que um personagem ensinava algo a outro personagem. Após cada trecho, analisávamos a didática daqueli "professori" do filme. Tentávamos adivinhar que tendência pedagógica aqueli professori seguia ou qual era o plano daquela sua "aula". O trabalho com as cenas didáticas era uma forma de ligar o interesse dis alunis (os trechos de filmes eram trazidos por elis mesmos) com o conteúdo da disciplina. Eu usava durante cinco aulas e funcionava bem.
Fiz então a pergunta abracadabra:
— E se eu fizesse algo parecido toda aula?
*
É difícil comunicar todo o processo didático criativo que se seguiu. Foram muitas ideias e muitas tentativas de organizar e colocar em prática essas ideias. Não pense que o que vou apresentar em seguida veio pronto. Não. É um trabalho ainda em andamento, com modificações de semestre a semestre, desde 2018.2 até agora.
Então é o seguinte...
Defini primeiro os conteúdos essenciais, baseados na ementa da disciplina, mas com alguma liberdade de nomenclatura e ordenação. Fiz tanto para Metodologia do Trabalho Científico quanto para Didática. Tratarei só da Didática aqui. Os conteúdos essenciais eram: 1) Definição de Didática (original e contemporânea); 2) Dimensões da Didática (humana, técnica e política); 3) Tendências Pedagógicas (liberais e progressistas); e 4) Elementos do Planejamento Didático (objetivo, conteúdo, metodologia e avaliação).
Sintetizei esses conteúdos no que chamei de "ficha de observação". Não é um nome pelo qual eu morra de amores, mas ainda não achei nome mais adequado. Vejam uma imagem da ficha de observação...
Na última parte da aula, tendo por volta de 30 minutos, usávamos a ficha de observação para pensar a respeito da aula que estávamos tendo. Primeiro, em aproximadamente 5 minutos, cada aluni tentava preencher a ficha por si, identificando como as dimensões da Didática haviam se manifestado na aula, qual a possível tendência pedagógica do professor e como havia sido pensado cada elemento do plano da aula.
Por exemplo, uma ficha poderia ficar assim após preenchida...
Neste exemplo, foi marcada mais de uma tendência pedagógica porque é comum is alunis ficarem em dúvida. E também porque uma aula nem sempre é expressão inequívoca de uma única tendência pedagógica.
Depois que algumis alunis haviam terminado, eu os dividia em grupos, de forma que cada grupo tivesse pelo menos uma pessoa que havia preenchido tudo. Nesses grupos, em aproximadamente 10 minutos, is alunis compartilhavam o que haviam observado e faziam alterações em suas próprias fichas. Eu passeava entre os grupos, observando, tirando alguma dúvida, fazendo algum comentário.
Finalmente, fazíamos um grande círculo e, em aproximadamente 15 minutos, eu perguntava a duas ou três pessoas a respeito de cada item da ficha, fazendo eventuais correções e acréscimos. Mas, na maioria das vezes, bastava o que os estudantes haviam observado. Eu procurava não falar muito. Essa é uma coisa muito importante quando se está tentando construir conhecimento com is alunis e não transferir conhecimento para is alunis: falar pouco. Possivelmente dedicarei um episódio do Didaticx a essa distribuição do tempo de fala e outros tempos da sala de aula.
Por meio dessa reflexão a cada aula, i aluni percebia o conteúdo não apenas abstratamente, mas vivenciado, em ação. Como usávamos a ficha ao final da aula, todis is alunis já haviam chegado, então os que precisavam chegar atrasadis não perdiam o momento mais explícito do conteúdo. Quanto aos que faltaram (is alunis podem faltar até 4 das 16 aulas), eles teriam muitas outras oportunidades de conhecer, reconhecer e refletir a respeito dos conteúdos essenciais da disciplina. E em cada tópico da ficha, há indicação de um autor citado na bibliografia
do plano de ensino da disciplina. Caso i aluni queira se aprofundar
naquele tópico, é só ler aquele livro/artigo. Ou seja, não tínhamos leitura obrigatória e/ou discussão de texto em sala de aula como estratégia de ensino. Conversávamos pontualmente sobre os textos indicados na medida em que algumi aluni trazia alguma dúvida ou comentário sobre a leitura para a sala de aula.
Às vezes, dependendo de fatores diversos, pulo a parte individual ou de grupos, mas sempre mantendo o círculo final em que avalio as percepções dis alunis a respeito do que aconteceu em sala.
Creio que é possível fazer isso para praticamente qualquer disciplina ou matéria: definir conteúdos essenciais e trabalhá-los diariamente. Por exemplo, quando dei a disciplina de Metodologia do Trabalho Científico, essa era a ficha e analisávamos a aula como se ela fosse uma pesquisa científica.
A utilização da ficha me deu mais tranquilidade em relação ao aprendizado dis alunis. Agora tenho a sensação de que estou fazendo praticamente tudo que posso para que is alunis aprendam. Sim, ainda há alunis que chegam ao final do semestre sem terem aprendido tudo que está na ficha, mas já posso dividir essa responsabilidade com elis com a consciência mais tranquila agora.
Outra coisa positiva do uso da ficha é a reflexão sobre minha própria prática pedagógica. Como o objeto de análise da ficha é a própria aula, e essa análise é feita pelis alunis, eu sempre sou surpreendido pelos seus pontos de vista. Testemunhas da aula que planejei e realizei, elis me dão retornos objetivos e subjetivos a respeito de como a aula está realmente acontecendo. A partir disso, tenho muito mais elementos para fazer alterações na minha prática. É um aprendizado diário.
Para além disso, o grande benefício da reflexão a partir da ficha de observação foi me liberar para ousar mais durante o meio da aula, em que realizo a atividade principal do dia. Agora que sei que o estudo mais explícito do conteúdo essencial está garantido, me permito experimentar mais ao tratar de outros assuntos ligados à disciplina. Então temos, na primeira meia hora da aula, a roda de sentimentos e a música, na meia hora final a reflexão a partir da ficha de observação, e no meio da aula (por volta de 90 minutos nos cursos presenciais noturnos) uma atividade interativa relacionada ao conteúdo da disciplina, mas não necessariamente a respeito dos conteúdos essenciais que serão tratados no final da aula.
Os episódios seguintes do Didaticx, possivelmente mais de dez deles, serão dedicados a cada uma dessas atividades interativas. Em algum momento, talvez mais para o final da série, tratarei também da questão do espaço-tempo da aula e da avaliação, que são as questões mais difíceis de enfrentar quando queremos mudar nossa prática de ensino. Mas para entender melhor o que tenho a dizer a respeito disso, é mais interessante vocês terem primeiro uma ideia das atividades interativas que realizo. Assim, o que eu falarei no final não soará tão abstrato.
*
Ensinar não é, principalmente, fazer com que is alunis assimilem determinados conteúdos. É introduzir i aluni em determinada cultura ou fortalecer sua atuação nela.
Na clássica experiência de alfabetização de Angicos, Paulo Freire e sua equipe partiram do que is alunis já sabiam, de coisas da sua realidade próxima. Uma das palavras usadas na alfabetização era "tijolo", algo do dia a dia dis alunis. Palavras como ti-jo-lo eram decompostas em sílabas, agrupadas em famílias (ta-te-ti-to-tu, ja-je-ji-jo-ju, la-le-li-lo-lu) e rearrumadas para formar palavras e frases. Um relato emocionante desse processo foi quando um aluno escreveu a seguinte frase: "Tu já lê". Ao demonstrar seu aprendizado, o aluno comunicou que já fazia parte da cultura da leitura.
Quantas vezes, como professoris, não forçamos tanto nossis alunis a aprender determinado conteúdo ao ponto de criar uma resistência? Quantas pessoas, supostamente alfabetizadas, dizem não gostar de ler? Aprenderam conteúdos, mas não se inseriram na cultura da leitura. O mesmo vale para Matemática, Química, Biologia...
O meu "tu já lê" é quando, ao final da disciplina, uma aluna diz "professor, voltei a ter gosto pela Pedagogia". Ou então: "professor, você me fez perceber que eu posso ser eu mesma nas aulas do meu estágio". Claro que essas alunas aprenderam algum conteúdo, mas o principal aprendizado aqui é de inserção na cultura. A primeira aluna voltou a se sentir próxima da cultura pedagógica. A segunda aluna sente que pode atuar na cultura escolar de maneira mais autêntica.
Eu era um estudante de bacharelado em História que queria ser historiador, pesquisador. Mas as aulas de uma professora, Luiza de Teodoro, me fizeram dizer para mim mesmo:
— Isso que a Luiza faz com a gente, eu quero fazer com outras pessoas. Quero ser professor.
Luiza me fez querer entrar na cultura docente. Foi mais do qualquer professori, antes ou depois, me ensinou. Porque Luiza me ensinou o essencial do essencial: querer fazer parte daquele conhecimento em contínua construção. E é só isso que precisamos fazer como professoris: que nossis alunis queiram fazer parte do mundo do Português, da Matemática, da Geografia... Porque uma vez tomada ou fortalecida essa decisão, a pessoa tem todo o tempo restante para aprender os conteúdos necessários para se comunicar e atuar nas culturas escolhidas.
Como escreveu Yeats, "Educação não é encher um balde, mas acender uma fogueira".
E você, professori, como pensa e trata o conteúdo em suas aulas?
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