quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

[ RECESSO ]

 Durante o recesso de final de ano da UFC (23 de dezembro a 6 de janeiro), não haverá didaticário. Retornamos dia 7 de janeiro. Feliz Natal e uma boa passagem de ano!

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Todo dia é um mergulho

Quando estou fazendo o que gosto, críticas são um verdadeiro tesouro de autoconhecimento.

Na época em que eu escrevia resenhas para um jornal, um crítico literário comentou que minha escrita tinha muitas idiossincrasias. Eu tive que procurar no dicionário: "particularidade comportamental", "conduta incomum ou extravagante". Não me irritei. Fiquei agradecido ao crítico por ter tomado consciência de algo tão fundamental à minha escrita.

Uns poucos anos depois, na minha primeira experiência como professor, pedi a mis alunis de 8ª série que listassem os tipos de professores que conheciam. Fizeram uma lista impressionante e fui chamado, entre outras coisas, de "professor palhaço". Tomei consciência da alegria que eu, um sujeito de maneira geral tristonho, levava para a minha sala de aula. 

Muitos anos depois, já como professor de Didática, uma aluna incomodada com minha metodologia lúdica disse:

— Isso não é uma aula, é um clube social.

E eu percebi, claramente, como a criação de vínculos entre estudantes havia se tornado um elemento essencial de minha didática.

Ontem uma aluna, sentindo-se um tanto perdida com a metodologia mais self service da disciplina a distância, falou:

— Todo dia é um mergulho.

E me dei conta de que é exatamente isso que procuro proporcionar a mis alunis. Um mergulho diário. Uma imersão em outra realidade. Um banho de novas ideias. Um batismo didático.

Sem essas e outras críticas, eu seria uma pessoa e um professor muito menos consciente daquilo que faço. Graças a elas, me descobri e me sinto bem como idiossincrático, palhaço, gerente de clube social e instrutor de mergulho.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

A profissão das profissões

As várias ocupações são denominadas de acordo com sua especialidade: administradoris administram, compositoris compõem, educadoris educam...

E professoris? Professam?

Professar é declarar, proclamar, reconhecer, confessar. Professoris declaram, proclamam, reconhecem, confessam o quê?

Professam aquilo em que acreditam. Enquanto ensinam isto ou aquilo, estão na verdade revelando o que pensam, sentem e fazem a respeito disso ou daquilo. Professoris dão aula de si mesmos.

Agricultoris praticam a agricultura, contadoris praticam a contabilidade, tradutoris praticam a tradução...

Professoris praticam o quê?

Professoris praticam a profissão. A ocupação de professori é denominada não de acordo com sua especialidade, mas por sua generalidade. Antes de serem professoris disso ou daquilo, professoris são professoris genericamente.

É a profissão das profissões. A metaprofissão. Origem, destino e percurso de todas as ocupações.

Ao formar futuris professoris na universidade, gosto de ficar atento ao que is alunis professam. Pois está aí, naquilo que declaram, proclamam, reconhecem e confessam, a identidade sempre em movimento de nossa profissão.

domingo, 20 de dezembro de 2020

O prazer de planejar

Lendo os comentários ao didaticário de ontem, achei que o Beto achou que eu achava que fazer planejamento é chato.

Sim, preencher planos de aula ou de ensino em seus modelos burocráticos é tão chato quanto possível. Mas se resume a isso toda a chatice relacionada ao planejamento. Planejar é a atividade mais prazerosa que realizo como professor, superando inclusive as boas aulas do dia a dia e só perdendo para as aulas maravilhosas que acontecem de vez em quando.

Comparo o planejamento didático a uma refeição de self service. Tenho à disposição dezenas e dezenas de opções das mais variadas cores e sabores. Posso fazer qualquer combinação, em qualquer ordem. Naqueles momentos em que estou observando as possibilidades, é como se eu degustasse cada coisa. Antes mesmo de pegar o prato para me servir, sinto a saciedade de quem comeu tudo que gostaria sem engordar um grama.

Pego a fila, preencho meu prato, faço a pesagem e sento para comer. Essa é a aula. Fico contente por ter comido aquilo que escolhi. Mas não se compara a tudo que saboreei durante o planejamento.

Que não fique dúvida, Beto. A parte chata do planejamento é como uma espinha de peixe que fica no prato. É como palitar os dentes. É como passar no caixa para pagar a conta. Tirando isso, planejar é o prazer da criação em toda a sua plenitude. E bon appétit!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Dar ou não dar aula?

Professores dever dar aulas generosamente ou estudantes devem tomá-las com seu próprio esforço?

A resposta é óbvia: um pouco das duas coisas. Mas é mais fácil falar do que fazer.

Professores deveriam acolher e estimular estudantes, organizando o espaço de aprendizagem e lhes fornecendo algumas ferramentas básicas, tanto externas quanto internas. E estudantes deveriam aproveitar o que é oferecido por professores e, a partir de seu próprio esforço, estudar e aprender aquilo a que se dedicam.

No contexto de aulas particulares, é mais fácil para im professori considerar e motivar cada aluni, auxiliando em seus esforços. Mas não podemos reduzir a educação a aulas particulares porque os grandes aprendizados se dão pela sociabilidade. Como dar atenção e acompanhar estudantes quando estão em grande número e provêm das mais variadas situações sociais, econômicas, religiosas? Quando se tem que acompanhar dezenas de alunis por sala e várias turmas por ano, torna-se mais difícil a harmonia entre o dar aulas de professores e o tomar aulas de estudantes.

Cada professori descobre ou inventa seu próprio equilíbrio, sempre instável. 

No meu caso, gosto de começar dando aulas abundantemente. Muitas vezes, estudantes têm um repertório reduzido de possibilidades didáticas. Para muitis, aulas expositivas (nas ciências exatas) e discussão de textos (nas humanidades) são tudo que eles conhecem.

Em seguida, abro espaço para que estudantes tomem conta de seu próprio processo de aprendizagem, individual e coletivamente. São momentos difíceis das disciplinas porque existe muita resistência a assumir um papel mais ativo na aprendizagem. Estudantes se sentem imediatamente bem quando participam conduzidis por professores, mas resistem quando chamadis a conduzirem o próprio aprendizado.

Dependendo do nível de superação dessas resistências iniciais, deixo que estudantes continuem tomando as aulas para si ou então volto a determinar mais o rumo das aulas, que varia de turma para turma num mesmo semestre.

Em 2020.2, aproveitando que tenho apenas turmas de Didática, vou experimentar algo inédito: integrar as várias turmas em um único projeto de adaptação de jogos para a educação. Depois de muito refletir sobre o quanto dar ou não dar aulas nesse projeto, cheguei a uma dinâmica que permitirá vários níveis de envolvimento dis alunis. Esta semana, apresentarei os jogos e a proposta para as turmas.

Estou curioso para saber o quanto darei aulas neste semestre.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Os deslimites das palavras

Você tem fixação por palavras? Não é preferência, é fixação mesmo. Você tem?

Sempre me assusto quando vejo alguém brigando por palavras.

— Olha, isso aí que você disse, não é assim que a gente diz por aqui.

— Não posso dizer "caçarolinha de assar leitão"?

— De jeito nenhum! Melhor falar "Carolina de Sá Leitão". Não lhe parece mais preciso, mais nobre, mais científico?

Em ciências e até na educação, as palavras cada vez mais são reduzidas a conceitos, obrigadas a sempre dizer alguma coisa muito específica. Até a palavra conceito foi reduzida. Ou alguém aí, além do Houaiss, lembra que conceito também quer dizer espírito, compreensão, ponto de vista, ditado, moral, reputação?

Pobre palavra conceito, reduzida a significar uma formulação abstrata da realidade. Pobres palavras fixadas em conceitos e usadas como instrumento de redução da diversidade, da criatividade, da invenção.

Precisamos recuperar, feito Manoel de Barros, os deslimites das palavras. Aproximar as palavras do ouvido, feito conchas, e escutar o que elas querem dizer. Ouvir alguém falar o errado, o duvidoso, o inadequado, e se maravilhar com a dança de sentidos das palavras.

Nas salas de aula, nos artigos acadêmicos, nas bancas de TCC. Que cada palavra se livre das correntes que lhes fixamos aos pés, e rodopie lindamente.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Fala, escrita, fala

Você já começou a procurar por uma coisa e acabou encontrando outra que estava ainda mais escondida?

Em 2020.1, criei o podcast Vozes da Didática, em que eu falava, cantava e recebia algunis convidadis. Após os primeiros episódios, percebi que meu grande barato não era produzir os áudios, e sim escrever os textos. Mas esperei até o final do semestre para encerrar o projeto.

Em 2020.2, decidi ficar só com o que era mais prazeroso: escrever. E iniciei este diário didático. Acordo e já começo. De manhã cedinho, com a cidade ainda espreguiçando e meus pensamentos envoltos em sonhos, me sinto mais livre para escrever. 

A primeira parte da escrita, transformar as ideias em frases, é mais fluida. As palavras são todas bem-vindas, e eu não fico na porta perguntando identidade e CPF de cada uma. Deixo todo mundo entrar na festa.

Na segunda parte, mais crítica, preciso mandar pra fora quem está atrapalhando, por mais bonitinha que seja a palavra. Uma forma de identificar quem está perturbando é ler o texto em voz alta. Várias vezes. Palavras ou frases que obstruem a leitura precisam sem mudadas de lugar ou, na maioria das vezes, simplesmente expulsas.

Leitura após leitura, e são muitas, o que era difícil de falar vai ganhando ritmo, musicalidade. As últimas leituras são menos para corrigir alguma coisa e mais para usufruir da sonoridade das palavras.

Mas aí me deu vontade, vejam só, de gravar a leitura do texto final. Não mais como episódios de um podcast, mas simplesmente como um registro do som que essa festa de palavras toca em mim.

Buscando a fala, achei a escrita. E, dentro da escrita, a fala.

 

Vocês pode ouvir este diário aqui. E pode ouvir alguns dos diários anteriores, bem como os diários seguintes, aqui. Coloquei um link permanente do lado direito desta página.

domingo, 13 de dezembro de 2020

Homo Certiens

Deveríamos trocar homo sapiens por homo certiens. Porque já deve ter ficado claro que nós não sabemos muita coisa, mas achamos que estamos sempre certos.

Uma criatura que mata outra criatura, acha que está certa. E se descobre que está errada, e se arrepende, passa a achar certo ter se arrependido. Não tem escapatória: assassinos, loucos, publicitários, padres e até escritores de diários de didática, todos achando que estão fazendo a coisa certa. Não admira que o mundo seja essa loucura.

Já gastei muito pensamento matutando onde isso vai dar e minha mente só tem sossego quando escuta Caetano cantando eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem, apenas sei de diversas harmonias, bonitas, possíveis, sem juízo final.

Uma sala de aula com trinta, quarenta, cinquenta homines certientes é um microcosmo do mundo. Professores e estudantes com as mais variadas ideologias, credos, traumas e manias. Há que se procurar pelas harmonias possíveis, encontrar beleza nas diferenças e evitar julgamentos definitivos sobre o que é verdadeiro ou falso.

Além de se perguntar de vez em quando: Será que estou mesmo certo?

sábado, 12 de dezembro de 2020

Didática selvagem

Is alunis gostaram da primeira aula. Mas as demais aulas do semestre não serão como a primeira.

Em muitas coisas na vida, a gente muda até dar certo, depois continua do mesmo jeito. Com as minhas aulas, é diferente. Mudo até dar certo, depois continuo mudando até dar errado.

Em 2019.2, eu até achava que tinha chegado a um formato de aula que eu poderia repetir, com pequenas mudanças, por anos e anos. Mas em 2020.1 veio a pandemia e tive que mudar tudo de novo. 

Mil ideias de como dar aulas à distância, mas, pelas pesquisas, is alunis tinham mais acesso ao WhatsApp. Como seria uma aula usando essa ferramenta? Eu não sabia. Tive que inventar. E o formato funcionou.

Fiz a primeira aula deste semestre, 2020.2, com o formato que já havia dado certo. Mas há outras ideias que eu gostaria de experimentar. A partir da segunda aula, tudo muda. E se is alunis que aceitaram o formato atual não quiserem experimentar as novas ideias comigo?

Pergunto já sabendo que a resposta não é mental, e sim visceral. Eu farei a mudança, mesmo que dê errado. Porque, mesmo que dê errado, será de grande aprendizado. Apenas mais uma pequena morte seguida de uma nova ressurreição. Meu coração didático é selvagem e, como canta Belchior, tem esse jeito de deixar sempre de lado a certeza, e arriscar tudo de novo com paixão.

A esperança é chegar ao final de 2020.2 com um novo formato que também dê certo. E mudá-lo novamente no semestre que vem.

Vem viver comigo, vem correr perigo, vem morrer comigo, meu bem, meu bem, meu bem...

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Quero aprender os nomes dis alunis

As aulas remotas tiraram um doce da minha boca de criança presencial: decorar, guardar de coração, o nome de cada aluni.

Eu começava pelos que chegavam antes da aula. Já ia perguntando o nome e memorizando. Na roda de sentimentos, todos de pé no meio da sala, o desafio de aprender o nome de quem chegava atrasadi sem esquecer os anteriores. Durante a aula, testava a memória várias vezes, falando alto ou mentalmente o nome de quem eu via. Do meio para o final, preenchia a frequência só de memória.

No final da aula, tirávamos uma foto todis juntis, que eu estudava durante a semana, dia após dia, para não esquecer o nome de ninguém.

A cada turma, o processo se repetia e se complicava. Nomes iguais e rostos parecidos entre as turmas. E a quantidade aumentava: quarenta, oitenta, cento e vinte pessoas.

Na segunda aula, além dis alunis que faltaram à primeira, havia também aquelis que mudavam de lugar na sala ou então que vinham com um penteado diferente. A memória precisava se reorganizar para caber mais gente e mais variações de estilo.

E eu amava esse trabalho todo.

Como seria começar o semestre nas aulas remotas? Como decorar o nome de alunis que chegam num grupo de WhatsApp para uma aula por texto? 

Para piorar, quando fui duplicar cada turma para criar grupos que só funcionariam durante o horário das aulas, o WhatsApp adicionou todis is alunis como meus contatos, só que com números de telefone no lugar dos nomes.

Eu teria que mandar mensagem para cada aluni, perguntando seu nome e alterando o contato. Uma aluna, a Sol, até tentou me auxiliar, pesquisando uma maneira automática de trocar os números pelos nomes. 

Mas peraí!

Era justamente isso que eu precisava. Uma oportunidade de ter um primeiro contato com cada aluni e associar seu nome ao seu rosto. Se era aquele trabalho todo que eu amava, que eu ame agora este trabalho todo que se ofereceu para mim. 

Sinto novamente um gosto doce na boca.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

O impacto de chegar atrasadi

magine í m urso e ezesseis ulas eito ma ração om sse esmo úmero e alavras.

Você consegue entender o texto acima?

Tente de novo.

magine í m urso e ezesseis ulas eito ma ração om sse esmo úmero e alavras.

Consegue pelo menos dizer de que se trata?

Tente mais uma vez.

magine í m urso e ezesseis ulas eito ma ração om sse esmo úmero e alavras.

E se eu colocasse de volta a primeira letra de cada palavra?

Imagine aí um curso de dezesseis aulas feito uma oração com esse mesmo número de palavras.

Não está vendo?

Caso esteja num computador, dê um triplo clique na linha em branco abaixo. Caso esteja num celular, toque no espaço em branco abaixo e segure, depois expanda a seleção para ler tudo.

Imagine aí um curso de dezesseis aulas feito uma oração com esse mesmo número de palavras.

Viu que diferença pode fazer uma primeira letra?

Então _ão _etire _ _rimeira _etra _a _ula _esta _emana, muito menos a  _ _ _ _ _ _ _ _  palavra desta disciplina de Didática.

Esteja presente. Chegue pontualmente. Pode ser tão instigante quanto este texto.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Que tal escrever para o Didaticário?

Nós dávamos aulas para alunis que não nos consideravam loucos. Eu, Déa e Fabiano éramos formadores de artistas e produtoris culturais que se tornariam professoris de seus ofícios. Elis conheciam arte experimental suficiente para não se deixar abalar por professoris estranhis. 

Numa aula de Introdução ao Estudo da Cultura, colocamos um sofá de brinquedo e duas perninhas soltas no centro da sala. Pedimos para is alunis sentarem as perninhas no sofá na posição que quisessem. Incrível o que se pode fazer com duas pernas quando estão livres do resto de seus corpos. Tiramos fotos dis alunis sorrindo e do curioso arranjo de pernas que cada um fazia. Depois conversamos sobre os variados aspectos culturais associados à experiência.

Nossa loucura era tão bem-vinda que nos inspirava ainda mais. Resolvemos escrever cartas contando como tinha sido cada aula segundo a nossa perspectiva. Is alunis se animaram com os relatos e algumis escreviam cartas em resposta, contando como tinham percebido a mesma aula. Pena que esses registros tenham se perdido entre papéis e disquetes pré-internet.

Tenho lembrado dessas cartas ao escrever o Didaticário. Até agora, falei de minhas experiências anteriores de ensino. Mas a partir de amanhã, com o início das aulas deste semestre, esse diário começará a ser povoado por outris personagins, vocês, mis novis alunis, que já têm dado vida a esse diário por meio de seus comentários.

Que tal você, aluni leitori, dar o próximo passo e não apenas ler e comentar, mas também escrever o Didaticário, contando experiências que tiver em seu dia a dia de estudante de Didática? No grupo de WhatsApp da turma, darei instruções sobre como você poderá fazer isso. 

A loucura de um professor só se cura quando se encontra com a loucura de sis alunis.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

O guarda-chuva, o maluco beleza e o sentimento

Em 2015.1, um dos projetos que desenvolvi em minhas turmas de Didática era que is alunis ensinassem aquilo que queriam aprender. 

O Bené queria aprender a superar a timidez. Outris alunis queriam falar polonês, ganhar dinheiro, tocar violão... Cada aluni ensinava aquilo que ia aprendendo para toda a sala. E assim a gente exercitava um tanto de coisa enquanto estudava Didática.

Na última aula do semestre, houve uma comemoração. Entre os comes e bebes, um pudim que a Sarah aprendeu a fazer como parte de seu projeto de aprendizado. Às 11h, abracei e me despedi de todis.

Após caminhar uns 500m, dei pela falta do guarda-chuva. Retornei. Quando me aproximei da sala, ouvi música. Abri a porta e tomei um susto. Bené, de microfone na mão, cantava "vou ficar, ah, ficar com certeza maluco beleza". Sorrimos um para o outro, perguntei onde é que estava a timidez dele, peguei o guarda-chuva e saí.

Alguns semestres depois, encontrei o Bené no Shopping Benfica:

— Professor!

— Bené! Como você está?

— Alegre, professor. Sabe que ainda hoje eu me faço essa pergunta todo dia?

Bené se referia a "como é que você está se sentindo agora?", "qual o seu sentimento neste momento?" e outras variações que ainda hoje pergunto a mis alunis no início de cada aula. Uma forma bem simples de desenvolver nossa consciência emocional. 

Neste momento, o meu sentimento é de ansiedade pela retomada das interações acadêmicas. Após três semanas de sossego, recomeçam as reuniões por videoconferência. Pode não parecer, mas sou tão tímido quanto o Bené.

domingo, 6 de dezembro de 2020

A perspectiva di aluni

 Como professor, procuro manter viva a perspectiva di aluni. Uma forma disso, claro, é ouvindo is alunis. Outra maneira, menos óbvia, é mantendo-me como um aluno.

Depois que me tornei professor, há quase trinta anos, já fiz mestrado, doutorado, especialização, uma segunda licenciatura, outra especialização e uma série de cursos de menor duração. Esses dias mesmo estou fazendo um curso bem curto, de apenas nove encontros, para melhorar minha escrita.

Embora seja um curso online, com aulas pré-gravadas, existe um incentivo para tirar dúvidas diretamente com o professor. Me deu vontade de fazer uma pergunta e tentei escrever. Digo tentei não apenas porque o curso é em inglês e eu precisaria escrever nessa língua, mas principalmente porque a escrita se tornou um ponto vulnerável e fazer a pergunta não seria fácil. Não era uma questão técnica, mas emocional: como voltar a escrever? Como desbloquear o desejo que já foi tão natural e prazeroso, e hoje é sofrido?

Minha pergunta ficou assim:  "I once wanted to be a professional writer and had a few children's books published by local publishing houses. I also had some works selected in contests. But, after a few years of trying, I failed to make a living out of that and had to seek more steady jobs to pay the bills. So I became resentful about not being a professional writer and stopped writing overall. I regret stopping writing just because I wasn't able to make a living as a writer, but four or five years later, I still can't write anything but academic papers or class resources for my students. Sometimes, it's difficult even to read or watch writing advice like yours because they remind me of this failure. I know I'm not asking a technical question on writing, but maybe your point of view on this could help me to think about it from a new perspective."

Só ao começar a escrever mentalmente este diário, percebi que desde que enviei a pergunta ao professor não voltei ao site do curso. Eu, que acessava diariamente, tinha ficado dois dias sem entrar na plataforma. 

O que estou sentindo neste momento? 

— Medo da resposta.

Estou na dúvida se acesso o curso agora...

Vou lá...

Espere aí...

Essa foi a resposta do professor: "I hear you, Eduardo. It might encourage you to know that less than one-tenth of one percent of all writers actually make a living at it. Keep a job with a steady income and write because you love to. I had a full time job until I had written my 90th book and was in my forties. If you get lucky and break through with a bestseller, who knows? But if you don't, you'll still be doing what you love."

Senti alívio. Sinto que posso continuar a escrever em paz. 

É isso que chamo de conservar viva a perspectiva di aluni mantendo-me como um aluno. Não perder de vista que coisas que para um professor podem parecer simples, como fazer uma pergunta, na perspectiva di aluni podem carregar fortes emoções. Ser professor não é fácil. Ser aluni, muito menos. Manter a perspectiva di aluni faz florescer a empatia.

O que mais me aliviou na resposta do professor foi o início: I hear you, eu escuto você. Também me sinto escutando você, aluni, leitori, ao ler sua perspectiva nos comentários. Você é sempre muito bem-vindi.

sábado, 5 de dezembro de 2020

Meu primeiro professor antirracista

 Em 2019.2, durante as eleições para o Diretório Central dos Estudantes, uma chapa fazia campanha em minha sala quando um aluno disse:

— Cadê a representação negra?

Um dis representantes disse que a pessoa negra da chapa estava realizando outra atividade naquele momento. Meu aluno insistiu e senti que a coisa poderia ficar polêmica. Interrompi a discussão, agradeci a dupla de representantes e tentei continuar a aula. Mas parece que aquela aula ainda não acabou...

Este ano, já sob a pandemia, vimos o mundo se posicionar contra o racismo após o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos. Nos meses que se seguiram a esse movimento, observei um número cada vez maior de negros aparecer em programas de TV, artigos de jornal e até no meu feed do Youtube. Percebi, com um certo choque, que eu não costumava ver vídeos de pessoas negras e que não estava inscrito em nenhum canal de im negri. Comecei a ver vídeos e me inscrever.

A princípio foi uma reação. Mas ao ver mais gente negra falando, muitas vezes a respeito do racismo estrutural brasileiro, comecei a ser mais sistemático na prática de ver, ouvir e ler pessoas negras. Nas últimas semanas, essa prática se intensificou e tenho a sensação de que faço um curso sobre como ser antirracista.

Estou lendo, aos poucos e diariamente, o "Pequeno manual antirracista", da Djamila Ribeiro. E tenho visto, também diariamente, as séries Afronta! e Sankofa. Incrível como uma pessoa tão curiosa quanto eu viveu 50 anos sem curiar esse universo negro que, percebo com cada vez mais clareza, não é um mundo paralelo em outra dimensão, mas a realidade imediata fora da bolha branca em que vivi até agora.

Só hoje posso lembrar daquela aula e perceber que meu aluno não estava simplesmente sendo polêmico. Ele estava ativamente lutando pelo fim da discriminação negra no movimento estudantil, na universidade, na cidade, no país e no mundo.

É, Tomaz... você foi o meu primeiro professor antirracista e eu era um aluno meio desligado. Agora estou me esforçando. A aula continua.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Dançando pela videoconferência

 Quando me proponho a escrever com regularidade, as ideias ficam alvoraçadas, se agitam na minha mente:

— Me escreve logo!

— Você me pensou primeiro!

— Se não me escrever agora, depois o tema vai esfriar, hein!

É um caos. Um caos de que eu gosto, diga-se a verdade. Eu sou da paz e da tranquilidade, mas adoro essa agitação das ideias. Geralmente termina eu fazendo uma lista, como se distribuísse senhas. Ontem, depois de ter organizado a fila de ideias, já estava decidido o que eu escreveria hoje. Mas no final da noite apareceu uma ideia grávida de prioridade e passou na frente.

Dia desses, conversando com um amigo querido de Brasília, ele comentou que suas facilitadoras de Biodança continuavam trabalhando por meio de videoconferências. Fiquei curioso. Porque nas minhas aulas presenciais, eu costumo fazer vivências biocêntricas, envolvendo música e dança, mas não dei continuidade com a pandemia e as aulas remotas. As pesquisas indicavam que is estudantis usavam majoritariamente o WhatsApp, e não consegui traduzir as vivências biocêntricas para esse contexto.

Meu amigo me convidou para participar de um encontro. Fui no de ontem à noite. Começou de maneira fria, com uma apresentação de slides que, felizmente, foi curta. Depois começou a esquentar com uma conversa em pequenos grupos a respeito do arquétipo do Guerreiro-Amante. Comecei a sentir a aproximação afetiva típica das vivências biocêntricas.

Em seguida, o momento que eu estava esperando: consignas e músicas para se dançar de acordo com a consigna. Evitei comparar com os encontros presenciais e entrei no clima. Havia beleza em dançar e ver as outras pessoas flutuando em janelinhas.

O momento de que mais gostei foi o da troca de olhares. Presencialmente, isso acontece em roda, com todos abraçados pela cintura. Ou então dançando livremente pela sala e parando de vez em quando para um olho no olho. Ontem, as facilitadoras fixaram as pessoas na tela, uma por uma, por alguns segundos, e todos olhávamos para aquela pessoa enquanto dançávamos. Perfeito! A tecnologia usada para traduzir, transcriar uma experiência de profundo contato humano.

Quando fechei o computador, com o coração pleno de gratidão, demorei a dormir. O corpo incendiado de energia. A mente seduzida pela voz de uma ideia:

— Eu sei que você já distribuiu senhas, fez uma lista, organizou a fila, mas pensa em mim com carinho para o diário de amanhã.

No planejamento para este semestre, diminuí bastante as atividades síncronas e organizei um trabalho com projetos. Mas a noite de ontem me engravidou com o desejo de fazer pelo menos uma vivência biocêntrica nos próximos meses. Eu e mis alunis merecemos.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Ordem e Preguiça

 — Professor, o senhor é muito organizado — disse uma aluna referindo-se a uma planilha detalhada em que registro as aulas presenciais.

— É a preguiça! — respondi.

Sim, é a preguiça que me faz ser organizado. A planilha, por exemplo... Eu tinha muita preguiça de responder a um(a) aluno(a) que dizia:

— Professor, eu não sabia que era pra fazer isso porque faltei aula passada.

Ou:

— Professor, o senhor pode mandar de novo o link daquele texto?

Ou:

— Professor, mas eu entreguei o trabalho no dia tal.

Essas falas de aluno(a)s consumiam minutos e minutos de meu precioso tempo. Resolvi criar a planilha para dar uma resposta mais preguiçosa: "Dá uma olhada na planilha da disciplina, por favor."

Mas a preguiça é um bicho inquieto. Mal se livra de uma coisa já fica querendo se livrar de outra. Faz algum tempo que tenho tido preguiça de escrever parênteses para dar conta de todo(a)s o(a)s novo(a)s e antig(a)s aluno(a)s. Trata-se de uma necessidade, eu sei, de reverter o preconceito de gênero que está embutido em nossa própria língua, mas dá preguiça.

E não sou só eu que tem preguiça disso. No mundo digital, tem muita gente trocando "o(a)" por "@" para se dirigir a tod@s s@s amig@s virtuais. Pessoas mais radicais, de raiz, têm usado o "x". E, mais recentemente, vejo também o uso do "e", que é o que gera maior consenso.

São alternativas interessantes, mas descobri que também me dão um tanto de preguiça. A "@" porque preciso apertar o SHIFT antes de digitar, o "x" porque não é facilmente pronunciável e o "e" porque às vezes confunde com o uso frequente do "e" como conectivo ou como final de palavras já existentes: "o(a)s novo(a)s aluno(a)s" ficaria "es noves alunes". Meio estranho tanto para ler quanto para pronunciar.

Mas o assunto é importante, merece consideração, e a preguiça não desiste fácil quando o objetivo é se livrar de algum trabalho. Por isso, desde o final do diário passado, i leitor atenti deve ter observado que usei o "i" para substituir "o(a)". Algumas vantagens do "i": é tão fácil de ser escrito ou digitado quanto qualquer outra letra, tem uma sonoridade não apenas distinta mas que lembra o querido idioma italiano e não se confunde com outras letras que já têm uso frequente.

Não bastasse isso tudo, já que o objetivo é reparar preconceito e discriminação, faz-se ainda uma reparação a uma letra marginalizada na nossa língua portuguesa. Usamos "a" e "o" como artigos definidos e desinências de gênero. Usamos "u" na composição de artigos e pronomes indefinidos (um, uns, algum, nenhum). Usamos "e" como conectivo entre palavras e frases. Mas não usamos "i" a não ser como uma interjeição que anuncia problemas: "Ih..."

Então i leitori e mis novis alunis me permitam, de quando em vez, fazer essa substituição. E, se você é tão preguiçosi quanto eu, fica o conselho: organize-se. A mensagem arqueada na bandeira nacional bem poderia ser ORDEM E PREGUIÇA.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Errar com estilo

Teclando no Messenger, nos primórdios das mensagens instantâneas, minha amiga disse: "PQ VC ESCREVE SEMPRE CERTO?!?!?!".

Minha primeira reação foi corrigir mentalmente a escrita da pergunta: Por que você escreve sempre certo? Logo em seguida, me espantei. Aquilo não foi um elogio, foi uma reclamação.

Não lembro o que respondi nem como a conversa continuou. Mas ainda hoje escrevo do mesmo jeito e me lembro desse episódio com carinho e curiosidade. Afinal, por que eu escrevo certo? Dois motivos, basicamente.

Primeiro. Fui educado para escrever certo. Não havia incentivo para escrever errado. Pelo contrário, lembro de ter perdido cinco pontos em um ditado por ter escrito ciências naturais, gramática, geografia e história com iniciais maiúsculas. Um ponto a menos por cada letra inicial, mesmo tendo sido tudo o mesmo erro. Foi ali, com 10 anos, na 4ª série, que decidi que escreveria sempre certo.

Segundo motivo. Escrever sempre certo torna meus erros intencionais. Quando alguém lê um suposto engano meu, se pergunta: Por que o Eduardo errou de propósito aqui? É o errar com estilo de Manoel de Barros, o errar poético, criador de sentidos.

O título deste blogue, por exemplo: didaticário. O corretor ortográfico já sublinhou de vermelho. Um erro certamente. Dois erros, aliás. O erro do corretor, por sua insensibilidade à poesia e aos neologismos. E o meu erro, intencional, criando sentidos para que se adivinhe por que errei de propósito.

Será que didaticário é uma palavra similar a antiquário ou relicário, referindo-se a um lugar em que se guarda coisas, no caso didáticas? Ou será como latifundiário ou bibliotecário, indicando alguém que se dedica a alguma atividade, a Didática? Ou, já que se trata de um blogue, de um weblog, de um diário da rede, da internet, será didaticário um neologismo que se refere a um diário didático?

A resposta cabe ai leitori. É i leitori alguém que sempre lê certo? Ou i leitori também gosta de errar com estilo ao ler um texto?

 

P.S. — Saiba i leitori que quiser me tirar um ponto por ter escrito Didática com inicial maiúscula que, segundo o atual acordo ortográfico da língua portuguesa, tanto a escrita minúscula quanto a escrita maiúscula são corretas para cursos, disciplinas e domínios do saber.