Neste texto, uso a letra "i" como recurso de linguagem neutra.
Costumo começar a aula com uma roda de sentimentos. Peço que todis is alunis se levantem e formem comigo um círculo no centro da sala. Dependendo do tamanho da sala e da quantidade de alunis, ficamos encostadis nas paredes. Apenas isso já é um excelente diagnóstico da qualidade educacional do ambiente: uma sala em que não é possível formar um círculo com todas as pessoas presentes não é um bom espaço para se ensinar e aprender.
Na roda de sentimentos da primeira aula, is alunis se entreolham e parecem relutantes. Às vezes acontece de fazerem um semicírculo: ninguém se aproxima de mim. Eu brinco dizendo que não mordo, quer dizer, mordo mas já jantei. Com o passar das aulas, a formação da roda é quase instantânea.
O simples fato de estar de pé sem nenhum acessório (principalmente celular) nas mãos, já é um primeiro passo importante no sentido de cada estudante estar realmente presente na sala de aula. A formação da roda é um exercício de concentração, literalmente: is estudantes formam a circunferência de um círculo ao redor de um centro vazio.
Na roda de sentimentos, cada um fala o que está sentindo naquele momento. Em sua versão mais, simples, o sentimento em uma única palavra. Geralmente eu começo, para exemplificar como funciona e para que is alunis tenham mais confiança para compartilhar seus sentimentos. Eu digo meu nome e falo o sentimento do momento. Em seguida, falo o nome da pessoa à minha esquerda e peço a ela que identifique e fale qual o seu sentimento. E assim segue até que todas as pessoas tenham falado. Se alguém chega atrasadi, entra na roda e participa normalmente quando chegar a sua vez.
A identificação do sentimento nem sempre é fácil. Tem pessoas que respondem "pensativa" ou "com fome" ou "cansada". Nesses casos, eu pergunto, respectivamente: "Qual o sentimento desse seu estado pensativo?", "O que você sente por estar com fome?", "Você está cansada fisicamente ou emocionalmente?"
Com o passar das aulas, is alunis identificam mais rápida e precisamente os sentimentos, e se sentem mais à vontade para compartilhá-los.
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Depois de algumas rodas de sentimento básicas, quando os estudantes pegaram o jeito, começo então a variar, tanto para manter o interesse quanto para aprofundar a percepção do sentimento e sua partilha com o grupo.
Algumas variações...
Como is estudantes se sentiam ao acordar, qual o sentimento predominante durante o dia e como estão se sentindo agora.
Como is estudantes se sentiram ontem e como acham que se sentirão amanhã.
O que deixou is estudantes animados durante o dia.
Como is estudantes gostariam que a turma se sentisse a respeito delis hoje.
Como is estudantes se sentem ao saber que a aula de hoje é sobre [assunto da aula].
Qual o sentimento mais antigo que is estudantes lembram de ter tido.
Umi estudante diz seu sentimento e a pessoa seguinte conta rapidamente uma situação em que também sentiu aquilo.
Umi estudante tenta expressar facialmente seu sentimento, sem palavras, e a pessoa seguinte diz o que a pessoa parece estar sentindo.
No final do semestre, como is estudantes se sentiram no primeiro dia de aula e como estão se sentindo agora.
São infindáveis as formas para permitir que is estudantes identifiquem e compartilhem seus sentimentos. Algumas vezes, peço que algumi aluni conduza a roda de sentimentos, criando sua própria forma de fazê-la.
Certa vez, encontrei um ex-aluno num shopping. Ele me falou que, mesmo já passados dois anos de que ele fizera a disciplina de Didática, ainda se perguntava todo dia: "O que você está sentindo agora?".
Interagimos constantemente com outras pessoas e é muito importante estarmos conscientes de nossos próprios sentimentos. Umi professori que não sabe o que está sentindo pode "descontar" um sentimento negativo em algumi aluni. Ou então, numa euforia de sentimento positivo, pode subestimar a dor ou a dificuldade que umi estudante esteja sentindo. Ter consciência dos sentimentos facilita nossa interação social e melhora o clima das aulas.
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Às vezes, aprofundo um pouco mais essa dimensão afetiva numa sequência de seis aulas em que divido is estudantes em duplas e peço que elis respondam umis para is outris seis perguntas por aula, totalizando "as 36 perguntas que levam ao amor" (The 36 Questions That Lead to Love - https://www.nytimes.com/2015/01/09/style/no-37-big-wedding-or-small.html). Se is estudantes estão em número ímpar, eu faço par com umi delis. Algumas perguntas são parecidas, mas como eu mudo a dupla de uma aula para outra, funciona bem.
Eis a lista de perguntas...
1. Se fosse possível escolher qualquer pessoa no mundo, quem você gostaria de convidar para jantar?
2. Você gostaria de ser famoso(a)? De que maneira?
3. Antes de fazer uma ligação, você costuma ensaiar o que vai dizer? Por quê?
4. O que seria um dia “perfeito” para você?
5. Quando foi a última vez que você cantou para si mesmo? E para outra pessoa?
6. Se você pudesse viver até a idade de 90 e manter a mente ou o corpo de uma pessoa de 30 nos últimos 60 anos de sua vida, o que você preferiria?
7. Você tem um palpite secreto sobre como vai morrer?
8. Cite três coisas que você e sua dupla parecem ter em comum.
9. Pelo que em sua vida você se sente mais grato(a)?
10. Se você pudesse mudar alguma coisa na maneira como foi criado(a), o que seria?
11. Dedique quatro minutos e conte para sua dupla a história de sua vida com o máximo de detalhes possível.
12. Se você pudesse acordar amanhã tendo adquirido alguma qualidade ou habilidade, qual seria?
13. Se uma bola de cristal pudesse lhe contar a verdade sobre você, sua vida, o futuro ou qualquer outra coisa, o que você gostaria de saber?
14. Existe algo que você sonha em fazer há muito tempo? Por que você não fez isso ainda?
15. Qual é a maior conquista da sua vida?
16. O que você mais valoriza em uma amizade?
17. Qual é a sua memória mais preciosa?
18. Qual é a sua memória mais terrível?
19. Se você soubesse que em um ano morreria repentinamente, mudaria alguma coisa na maneira como está vivendo agora? Por quê?
20. O que amizade significa para você?
21. Que papéis o amor e o afeto desempenham em sua vida?
22. Fale algo que você considera uma característica positiva de sua dupla. Alternem até terem compartilhado cinco características cada um.
23. Quão unida e afetuosa é sua família? Você acha que sua infância foi mais feliz do que a da maioria das outras pessoas?
24. Como você se sente a respeito de seu relacionamento com sua mãe?
25. Façam, cada um, três afirmações verdadeiras começando por “nós”. Por exemplo, "Nós dois estamos nesta sala sentindo..."
26. Complete esta frase: "Eu gostaria de ter alguém com quem pudesse compartilhar..."
27. Se você fosse se tornar um(a) amigo(a) íntimo(a) de sua dupla, compartilhe o que seria importante para ele(a) saber.
28. Diga à sua dupla o que você gosta nele(a); seja muito honesto desta vez, dizendo coisas que você não pode dizer a alguém que acabou de conhecer.
29. Compartilhe com sua dupla um momento embaraçoso em sua vida.
30. Quando foi a última vez que você chorou na frente de outra pessoa? E sozinho(a)?
31. Diga a sua dupla algo que você já gosta nele(a).
32. O que é sério demais para se brincar a respeito?
33. Se você morresse esta noite sem oportunidade de se comunicar com ninguém, o que mais se arrependeria de não ter contado a alguém? Por que você ainda não contou?
34. Sua casa, contendo tudo o que você possui, pega fogo. Depois de salvar seus entes queridos e animais de estimação, você tem tempo para fazer uma corrida final com segurança para salvar qualquer item. O que seria? Por quê?
35. De todas as pessoas em sua família, a morte de quem consideraria mais perturbadora? Por quê?
36. Compartilhe um problema pessoal e peça o conselho de sua dupla sobre como você pode lidar com isso. Além disso, peça a sua dupla que reflita sobre como você parece estar se sentindo a respeito do problema que escolheu.
Como algumas duplas são mais rápidas que outras, vou fazendo pequenas modificações no enunciado das perguntas que estão na lousa para que quem já respondeu todas as perguntas tenha novas perguntas para responder. Por exemplo, na pergunta 24, "Como você se sente a respeito do seu relacionamento com sua mãe", eu troco "mãe" por "pai". Uso um pincel de outra cor para facilitar a identificação das modificações. Quando todas as duplas responderam pelo menos as seis perguntas originais, eu encerro a atividade.
Certa vez, uma aluna falou que estava curiosa para saber as respostas das outras pessoas além da dupla dela. Experimentamos então fazer algumas perguntas e todis (ou aquelis que desejassem) responderam para o grupão. Funcionou bem também. No ensino remoto, usei algumas vezes essas respostas coletivas. E, no final, pedia que algumis alunis também formulassem perguntas para que todis respondessem. Essas variações sempre são importantes em Didática.
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Fiz formação de facilitador num caminho de autoconhecimento e espiritualidade chamado Pathwork. Lá conheci uma técnica chamada Revisão Diária que consiste na identificação de situações desconfortáveis e das reações emocionais que se seguem a elas. Elaborei uma versão ampliada para utilizar nos grupos de estudo que eu conduzia. Recentemente, comecei a usar essa revisão diária ampliada, que chamo de Lavando a Alma, em algumas aulas. É mais ou menos assim.
Falo que, por meio da roda no início da aula, temos identificado nossos sentimentos, mas que também é possível transformá-los, principalmente os sentimentos negativos. Pergunto então quem gostaria de se voluntariar para experimentar.
Com a pessoa voluntária, percorro cinco passos, que são registrados por escrito na lousa, em cinco colunas. Eu mesmo registro ou peço a outri aluni que faça isso.
Primeiro passo: situação desconfortável. A pessoa voluntária identifica, no dia atual ou anterior, três ou quatro situações desconfortáveis por que passou. Por exemplo: "Discuti com meu gerente", "Perdi o ônibus e cheguei atrasada na aula" ou "Terminei meu namoro". É importante que seja uma frase curta que descreva sinteticamente a situação. Depois ela escolhe uma dessas situações para ser trabalhada no Lavando a Alma. Por exemplo: "Discuti com meu gerente".
Segundo passo: reações emocionais. A pessoa indica a primeira emoção que sentiu quando a situação aconteceu. Nesse caso, poderia ser "raiva". Uma emoção é suficiente, principalmente quando a pessoa identifica corretamente. Às vezes, é difícil identificar a reação emocional original, então podemos listar dois ou três sentimentos. Nas fases seguintes, ficará mais claro qual deles é o mais fundamental.
Terceiro passo: conclusões errôneas. Esse é um momento muito importante de desabafo. A pessoa deve soltar o verbo e dizer os pensamentos movidos pelo sentimento identificado no item anterior. Por exemplo, no caso da raiva pela discussão com o gerente, a pessoa poderia dizer o seguinte: "Ele sempre faz isso, me cobra por algo que não pediu direito. Ele é um idiota. Deveria ser despedido. Já estou de saco cheio. Eu quero é que ele suma, sofra um acidente grave, morra. Não aguento mais. Da próxima vez, peço demissão." É importante que a pessoa fale até que sinta que desengasgou ou tirou um peso de dentro de si.
Quarto passo: ponto de vista alternativo. Nesse momento, convido a pessoa a ouvir imaginariamente alguém sábio que ela conhece (pode ser umi amigi ou alguma entidade espiritual, caso a pessoa seja religiosa). A ideia é dar à pessoa uma nova perspectiva que lhe permitirá ver a situação de maneira diferente. Eu então leio cada frase do item anterior e a pessoa escuta essa voz mais sábia e me diz o que ouviu. Por exemplo, respectivamente, "Às vezes, o seu gerente não se comunica muito bem, todos estamos sujeitos a errar assim também. Ele é uma pessoa como você que talvez esteja sofrendo algum tipo de pressão também. Pode ser mesmo que ele tenha medo de ser demitido e seja mais rígido do que deveria. Quando sentir que está começando a encher o saco, peça licença para ir ao banheiro por um momento. É melhor que a situação se resolva e não que o seu gerente suma, se machuque ou morra. Sei que está difícil, mas, depois de uma boa noite de sono, tente ver o que pode fazer para melhorar a situação: talvez conversar com sis colegas para pensarem juntos numa solução. Neste momento, pedir demissão talvez lhe cause mais problemas do que enfrentar a situação." É importante que cada conclusão errônea do item anterior seja conversada e que a voz sábia seja realmente sábia, ou seja, não alimente a emoção negativa original. Por exemplo, uma voz sábia não diria: "é isso mesmo, ele é um idiota, ignora ele e siga em frente".
Quinto passo: intenções positivas. Para finalizar, em poucas frases a pessoa deve formular uma intenção para quando a mesma situação ou uma situação similar se repetir. Ela pode usar algo que a voz sábia falou como inspiração. Por exemplo: "quando meu gerente me fizer uma cobrança que eu considero excessiva, vou pedir a ele um minutinho para ir no banheiro antes de continuarmos e, na volta, vou pedir pra ele que me detalhe um pouco melhor o que quer e que me dê um prazo razoável para cumprir a obrigação".
Da próxima vez que situação similar se apresentar, a pessoa terá melhores condições de lidar com ela. Lavando a Alma desse jeito muitas e muitas vezes, a pessoa também pode descobrir certos padrões emocionais que são comuns a várias situações e assim, pelo autoconhecimento, melhorar sua maneira de enfrentar os vários desconfortos cotidianos por que passa.
Quando as pessoas têm resistência a se voluntariar, eu uso uma situação desconfortável do meu próprio dia como exemplo. Vendo eu mesmo me expor, algumas pessoas se sentem mais confiantes para se expor também.
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A roda de sentimentos costuma ser breve, 2 a 10 minutos. As 6 perguntas e a lavagem da alma levam perto de meia hora. Geralmente dedico 20% do horário total da aula para trabalhar diretamente com sentimentos. O retorno em bem-estar e engajamento é maravilhoso.
Foi nessas atividades referentes a sentimentos que descobri que muitis estudantes tinham transtorno de ansiedade, depressão, déficit de atenção, síndrome de pânico, dificuldades de relacionamento, problemas familiares... e também paixões, encantamentos, sonhos, realizações... Esse conhecimento me permite planejar melhor minhas aulas e atender melhos mis alunis.
E você, professori, costuma trabalhar sentimentos em sala de aula? Como?
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