Neste texto, uso a letra "i" como recurso de linguagem neutra.
É incrível como pequenas coisas surgem, se desenvolvem e têm um impacto duradouro em nossas vidas. Ainda lembro que estava em um aniversário de família quando um primo me perguntou:
— Você conhece o Letroca?
Então ele me mostrou um joguinho de celular em que havia algumas letras embaralhadas e precisávamos formar um certo número de palavras, com pelo menos três letras, para vencer. Por exemplo...
Com as letras embaralhadas G D L A O E, podemos formar: gelo, galo, dela, loa, ela, lago, gelado, degola, legado, lado...
Fiquei imediatamente encantado pelo jogo. Jogava todo dia. Aí aconteceu algo estranho. Comecei a perceber, em muitas partidas, uma certa relação entre as palavras que eu formava. Como se as letras embaralhadas permitissem a formação de palavras próximas, amigas. E imaginei que poderia escrever um texto usando apenas essas palavras.
Foram precisas algumas adaptações: criar também palavras de uma ou duas letras, acrescentar acentos e pontuação, permitir que uma mesma letra pudesse ser usada mais de uma vez e, em vez de partir de letras soltas, começar com uma palavra-tema. Por exemplo...
M Ú S I C A
Formei as palavras: musa, usa, cia, uma, ímã, sua, mia, mica, cima, ia, cais, ai, ais, um, sim, mas, más, cisma...
E fui juntando essas palavras, e outras que foram surgindo apenas com as letras de MÚSICA, em frases, em versos, que resultaram neste poema:
Um ai,
um mais,
uma cisma.
Um ímã,
um cais,
uma musa.
Sim, música usa...
Música usa cisma,
música usa cais.
Música usa...
Música usa musa,
música usa ais.
Música usa...
Música usa ímãs,
música usa, sim...
MÚSICA, musica mais.
Fiquei encantado com a descoberta. Escolhia uma palavra, recombinava as letras e escrevia poemas. Experimentei também com pequenas expressões...
TÍQUETES DE TEMPO
— Tipo o quê?
— Sem tempo, sem tempo...
— Que te detém?
— Tem que tem que tem que.
— Tem o quê?
— Quepe, pique, tese.
— E se...?
— Pito e peste.
— Quem pode, pode. Podes?
— Teso, temo. E tu?
— Quieto, quieto.
— Que te deste?
— Tíquetes de tempo.
Eu havia encontrado um artifício que me permitia escrever mesmo quando não estava inspirado. Uma maravilha!
*
Quando comecei a dar aulas na UECE, em 2017, resolvi aplicar didaticamente a ideia.
Na primeira aula, em vez de perguntar ais estudantes o que era Didática para eles, coloquei D I D Á T I C A no quadro e expliquei para eles como funcionava: eles deveriam escrever um poema com palavras que tivessem apenas aquelas letras. Foi interessante, mas as palavras formadas com essas letras eram poucas e os poemas não ficaram tão bons.
Semestre a semestre, fui aperfeiçoando a ideia. Hoje faço assim...
Escrevo D I D Á T I C A G E R A L no topo da lousa e uso dois terços do quadro com colunas indicando "1 letra", "2 letras", "3 letras", "4 letras", "5+ letras", "Pessoas ou lugares". Escrevo uma palavra em cada coluna, usando apenas letras da expressão DIDÁTICA GERAL: "é", "lá", "dia", "tela", "lagarta", "Cida". Deixo cinco ou seis pinceis perto da lousa e chamo is estudantes para escreverem palavras. Cada pessoa se levanta, pega um pincel, escreve uma palavra na lousa usando apenas as letras da expressão e se senta para dar oportunidade a outra pessoa. Mas a pessoa pode se levantar novamente quantas vezes quiser. Eu também participo, adicionando palavras de vez em quando.
Quando já temos um número razoável de palavras (nunca contei, mas por volta de 50), eu divido o terço restante da lousa em duas colunas e escrevo "Frases" no topo da primeira coluna. Escrevo também um exemplo, como "Dia a dia, ela ia". Peço então ais estudantes que, individualmente, em seus cadernos, combinem palavras formando frases. Podem ser usadas não apenas as palavras que estão na lousa mas outras de que eles se lembrem, desde que usando apenas as letras da expressão DIDÁTICA GERAL. Peço que cada pessoa escreva pelo menos dez frases. Circulo pela sala, lendo o que as pessoas estão escrevendo, me divertindo com as frases, apontando as palavras que não obedecem à regra e auxiliando quem tem mais dificuldade.
Quando metade da turma fez pelo menos dez frases, passo para a fase seguinte da atividade. Formo pequenos grupos de três a seis pessoas, dependendo da quantidade de alunos da turma. Em cada grupo tem pelo menos uma pessoa que escreveu mais de dez frases e pelo menos uma pessoa que não conseguiu escrever nem dez frases. Assim pessoas com mais facilidade podem auxiliar pessoas com mais dificuldade. Peço que cada grupo use as frases que escreveram e outras que podem criar, sempre usando apenas letras da expressão DIDÁTICA GERAL, para compor um poema que termine com a essa expressão. E vou circulando pelos grupos, auxiliando quem precisa para que os grupos terminem a composição mais ou menos no mesmo tempo.
De vez em quando, vou também para a lousa e uso a última coluna para escrever meu próprio poema.
Quando todos os grupos terminaram, peço que, um por um, vão até a frente da sala e declamem, coletivamente o poema. Haja aplauso!
E foi assim que um joguinho de celular se transformou numa técnica de escrita criativa e depois em uma atividade interativa de sala de aula.
*
Compartilho com vocês alguns poemas que surgiram numa turma de 2020.1, pouco antes de passarmos para o modo remoto com a pandemia...
Ler até dar a largada
A dica era a letra
A letra é Arte
A arte da letra arde
Arde a real arte da ética
A real arte é cálida e cética
A tática da galera é a ideia literal
A larica da galera é Didática Geral
[autoria não registrada]
A atirada tia da recatada Érica dirige até a lateral da catedral a cada dia
TIC TAC
Érica irá até a tia e a alegria dela irá arder
A ética da Érica
A alegria da tia
A ética é rara
A arte é cara
Érica ria da arte da tia
Didática é arte
A didática de cada dia
Arte é didática
DIDÁTICA GERAL
(Aline, Danilo, Pedro, Raul, Tatiana)
A galera de Didática é legal
Recatada e largada era a real
Cada ida era alegria
Gerada dia a dia
A didática ideal
É a arte literal
Di-dar-ética a la carte
Didática geralarte
(Emily, Melissa, Raquel, Sergiane, Vicente)
A regra é clara
Cada dica dada gera arte
E a arte edita a regra
Regra reta
Regra errada
A regra é clara
Cada dica dada gera arte
E a arte cria ideia
Ideia clara
Ideia certa
Didática é arte
Arte da alegria literal
Arte da Didática Geral
(Amanda, Elano, Gabriela, Isabelle, Lindolfo)
Didática? Eita delícia!
Ela arde, ela é arte
Ela é tática e idade
Ela é dica e grita
A regra é clara e real
"A didática é geral!"
(Adelaide, Aurora, Filipe, Jennifer, Petrus)
Grata gera alegria
Crer e dar
Ler é alegria
A letra é dada até calar
Ralar até a tela ter arte
Dar arte a ela
Dar tática, dar ética
Dar a dialética tardia
E ria, e ria
A didática geral gera alegria.
(Cinara, Cinthia, João, Joelyza, Thaynara)
*
E você? Como leva e traz poesia em sala de aula?
*
Vou viajar nessa semana, então o próximo Didaticx fica para daqui a quinze dias.
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