quarta-feira, 17 de novembro de 2021

MEMORIAIS DE VIDA E APRENDIZADO (Didaticx 07)

Neste texto, uso a letra "i" como recurso de linguagem neutra.

Vou compartilhar com vocês hoje o meu mais precioso tesouro didático. Se me dissessem:

— Eduardo, se você esquecesse quase tudo que já fez em sala de aula e pudesse guardar na memória uma única estratégia para voltar a reconstruir sua prática de ensino a partir dela, o que você escolheria lembrar?

Eu responderia:

— Os memoriais.

A ideia é simples: is alunis escrevem a história da sua vida. Conheci o uso didático dos memoriais por meio de meu querido amigo Paulo Barguil. Senti imediatamente que precisava usar aquilo em minhas aulas algum dia, sempre com adaptações, claro. O texto atual de solicitação do memorial é o seguinte...

O memorial deve ter três partes: 1) Um resumo da sua formação até o início do semestre atual (formação recebida da família, da escola, da religião e de outros grupos sociais, atividades de trabalho e lazer, gostos pessoais, etc.), com ênfase nas pessoas que lhe ensinaram algo; 2) Uma descrição do seu cotidiano atual de família/trabalho/estudo/lazer (como é o dia a dia, como organiza o tempo, qual a sistemática de estudo, quais as dificuldades para fazer a faculdade, etc.); 3) Objetivos e planos para a conclusão do seu curso e para o seu futuro (já ensina? Quer se tornar professor ou trabalhar na área educacional? Qual seu projeto de vida?)

No início, eu pedia de 6 a 10 páginas, indicando detalhes de formatação: margens, fonte, tamanho, espaçamento... Mas muitas pessoas não obedeciam, e eu só me estressava, então simplifiquei: 3.000 a 5.000 palavras em qualquer formatação. A princípio, eu só pedia texto. Mas depois que um dis alunis colocou algumas fotos, passei a pedir de três a cinco fotos, sendo pelo menos uma atual, outra da infância e outra da adolescência. As fotos também me ajudavam na memorização dos nomes dis alunis.

Geralmente peço o memorial no final da segunda aula, depois que já criei um clima de confiança com a turma. Is alunis têm uma semana para escrever e me enviar por e-mail. Na semana seguinte, devem trazer o mesmo memorial impresso para a sala de aula. A leitura dos memoriais é, geralmente, o momento mais intenso de trabalho do meu semestre: preciso ler centenas de páginas com grande teor emocional em apenas alguns dias. Leio por volta de três memoriais por hora e preciso ler entre 100 e 120 memoriais. Sofro e me alegro com as desventuras e aventuras dis alunis. Após cada leitura, respondo brevemente agradecendo ai aluni pela partilha de sua vida, me referindo a algo específico que li.

Além de me fazer conhecer a vida, os desafios e os sonhos de cada aluni, a leitura dos memoriais também me permite enxergar melhor os grupos sociais de que fazem parte. Embora cada trajetória seja única, elas se conectam de muitas maneiras, revelando sofrimentos e aspirações que são coletivos. 

Conhecer tão detalhadamente a realidade de mis alunis mudou minha forma de ensinar e mudou meu sentimento em relação ao ensino. Me tornou muito mais empático e flexível, logo criativo. Várias estratégias que estou relatando aqui no Didaticx surgem pela necessidade de lidar com a situação real dis alunis. Elis não são o estudante que fui: que morava tão perto da universidade que podia ir a pé, que vivia em uma família razoavelmente estável, que conseguiu uma bolsa de estudos logo no segundo semestre e que não precisava trabalhar em outra coisa para sobreviver.

O momento mais bonito dessa atividade acontece em sala de aula, quando is alunis levam seus memoriais impressos e eu comunico que lerão os memoriais umis dis outris. Uma ou outra pessoa resiste e eu digo que ela não é obrigada a compartilhar, mas que verá que as outras pessoas são tão humanas quanto ela. Quando na minha leitura prévia eu identifico memórias muito traumáticas, como abusos sexuais, antes de comunicar a leitura coletiva dos memoriais falo individualmente com a pessoa e antecipo a ela o que farei e que ela não precisa se sentir obrigada a compartilhar. Com as carteiras dispostas em um grande círculo, os memoriais passam de mão em mão. Se alguma pessoa não trouxe seu memorial ou não quis compartilhá-lo, ela forma par com outra pessoa e as duas leem juntas, pra que ninguém fique sem memorial na mão.

Após alguns minutos, eu pedia para que passassem os memoriais para a pessoa à direita. Mas, embora eu soubesse que não dava para todas as pessoas lerem o memorial de todas as outras em uma aula, eu estava insatisfeito das pessoas lerem apenas o início de cada memorial. Então criei o seguinte. Antes do início da leitura coletiva, cada pessoa deveria destacar, sublinhar ou marcar seis trechos de aproximadamente 5 linhas do seu próprio memorial, sendo pelo menos um trecho do passado, outro do presente e outro do futuro. Esses trechos funcionariam como um resumo do memorial. Durante a leitura coletiva, cada pessoas leria primeiro esses trechos destacados para só em seguida continuar a leitura do memorial do ponto que quisesse. Como leio os memoriais previamente, no dia da aula fico observando as reações dis alunis e, quando algumis delis param de ler, dou o sinal para que todis passem novamente os memoriais adiante. 

Quando pensei nessa atividade de leitura coletiva, fiquei com medo de ser muito monótona, com is alunis sentados, lendo, silenciosamente, durante 90 minutos, mas me surpreendi. Geralmente, is alunis ficam profundamente engajados emocionalmente e, quando digo para passarem o memorial adiante, vários exclamam "ah!".

Para o final da aula, reservo um tempo de 1 minuto para cada estudante (se forem 40 alunos, 40 minutos) e faço duas perguntas para cada pessoa, em duas rodadas, começando com:

— Como foi para você ler os memoriais das outras pessoas? Responda em até 30 segundos.

É difícil descrever, mas acho que vocês conseguem imaginar o espírito desse momento. Só de lembrar, me emociono. Das falas das pessoas, emerge uma profunda empatia, uma semente boa de amor mútuo. Sinto muitos preconceitos e estereótipos se dissolvendo naquele momento.

Em seguida, faço uma segunda rodada com a pergunta:

— E como foi para você ter seu memorial lido por outras pessoas? Responda em até 30 segundos.

Muitas pessoas falam do sentimento inicial de vergonha que vai aliviando na medida em que leem os memoriais das outras pessoas.

Saímos da sala com as almas lavadas.

*

Certa vez, uma aluna que era crítica das minhas aulas — dizia até que aquilo não era uma sala de aula, era um clube social — me falou o seguinte:

— Professor, o senhor sabe muito da gente, mas a gente sabe pouco do senhor.

Is alunis que não concordam com nossa metodologia são muito valiosos. De vez em quando, no meio das pedras, elis nos jogam uma pepita de ouro. 

A partir da observação dessa aluna, escrevi meu próprio memorial seguindo as mesmas orientações e o atualizo a cada semestre. Quando peço ais alunis que escrevam seus memoriais, disponibilizo meu memorial em formato digital online para quem quiser ler e levo impresso para a leitura coletiva.

Se você quiser ler a última atualização do memorial, do semestre em que teve início a pandemia, 2020.1, está disponível neste link: https://drive.google.com/file/d/1oU1Tit84InVqqm4YhtsXm9IQeG-eT1Ku/view

*

A chegada da pandemia interrompeu uma atividade complementar com os memoriais que eu experimentaria pela primeira vez: descobrir, junto com is alunis, as afinidades pessoais, familiares, religiosas, sexuais, profissionais... entre os memoriais. Sinto que há um potencial a ser revelado aí: criar ou ampliar, na turma, a consciência coletiva. Imagino até ser possível realizar a disciplina de Didática inteira a partir dos memoriais, partindo da experiência social concreta dis alunis e agregando reflexões teóricas. Não sei se um dia farei isso porque gosto muito de variar as atividades durante um semestre, mas é uma possibilidade.

*

E você? Costuma trazer a memória de vida dis alunis para a sala de aula, relacionando-a com a sua matéria ou disciplina? Como?

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