sexta-feira, 5 de abril de 2024

COISAS EXTRAORDINÁRIAS PODEM NASCER DE DIAS ORDINÁRIOS (Rian Rodrigues)

A quarta semana de estágio me deu a sensação de um dia "comum", aparentemente sem grandes acontecimentos. A aula foi sobre figuras geométricas planas e a professora abordou as diferenças entre os sólidos geométricos e as figuras planas. Ela utilizou objetos do cotidiano (como um pote e um rolo de papel higiênico) para demonstrar algumas dessas figuras e nomeou-as como paralelepípedo, cubo, cilindro… "Eles aprendem melhor no concreto", disse ela.


Em meio às explicações, as crianças iam também apresentando alguns exemplos de objetos do cotidiano com formas geométricas. Rosa mostrou a ponta do lápis, e a professora explicou que tinha forma de cone. Marcelo levantou da sua cadeira e mostrou à professora um pacote de pastilha, que tinha o formato de um paralelepípedo. 


Regina também fez um trabalho interdisciplinar envolvendo letramento e análise linguística, através da nomeação de algumas figuras geométricas na lousa. Ela desenhou um retângulo, um círculo, um quadrado e um triângulo e, a partir disso, foi convidando as crianças a pensar na escrita dessas palavras. "Como se escreve 'retângulo'? Como se escreve o 'RE'? E o 'TAN'?". "Como se escreve 'círculo'? O 'CI'?". "O 'S' e o 'I', tia", respondeu uma das crianças. Esse momento revelou que algumas crianças já estão entendendo que a escrita nota a pauta sonora das palavras que falamos (MORAIS, 2012), um conhecimento muito importante para o processo de alfabetização, e estão demonstrando desenvolvimento na consciência fonológica. Uma das crianças falou, com um tom questionador: "Mas, tia, o H… Ele não tem som.", quase como se perguntando "Pra que serve ele, então?". A professora respondeu, gesticulando de forma teatral: "O H é especial, ele é chique, ele é silencioso!". 


Depois desse momento, a professora anunciou uma nova etapa da atividade, com um tom de voz maquiavélico e movimentos teatrais: "Agora, olha o que eu vou fazer, a tia é má, ela vai apagar tudo da lousa… A tia é looooouca!". Após apagar os desenhos e os nomes das figuras, ela reescreveu, em uma coluna, as palavras e, em uma segunda, desenhou novamente as figuras e chamou as crianças individualmente para fazer a leitura das palavras da primeira coluna e a correspondência com o respectivo desenho. A atividade foi interessante, mas acredito que poderiam ter sido um pouco mais exploradas as estratégias que as crianças estavam utilizando para desvendar as palavras, a fim de entender o raciocínio e a compreensão de leitura demonstrados por elas. 


As crianças leitoras da sala não participaram dessa atividade de leitura de palavras, porque a professora queria trabalhar com os demais. Mas Rosa, uma das crianças que já lê, pediu para participar, ao que a professora respondeu: "Os leitores vão para uma coisa pior, porque isso é fácil." Eu penso que essa forma de abordagem pode acabar gerando nas crianças esse senso de que algumas são "foguete" enquanto outras são "bicicleta" e, assim,  enfraquecer a conquista daqueles que já estão conseguindo ler essas palavras.


Na terceira etapa da atividade, a professora apagou os desenhos e escreveu apenas os nomes das figuras em uma coluna, em uma ordem diferente, e pediu para as crianças desenharem a figura abaixo do respectivo nome. Nesse momento, ela chamou algumas crianças que já leem, porém eu acredito que essa atividade não foi tão desafiadora para os leitores, uma vez que eram as mesmas palavras trabalhadas anteriormente, que eles já haviam conseguido ler nas outras etapas, e exigia delas apenas um desenho, sendo que talvez seria uma boa oportunidade para trabalhar com elas a escrita autônoma daquelas palavras.  


Em seguida, a professora também explicou, utilizando objetos do cotidiano, que a alteração da sua posição não muda aquele objeto. Uma garrafa deitada não deixa de ser garrafa por não estar em pé. Da mesma forma, ela aplicou essa lógica às figuras geométricas planas, mostrando que a mudança de posição não altera a figura. 


Após esse trabalho, a professora resolveu junto com as crianças algumas atividades do livro didático relacionadas ao tema. Uma delas envolvia recortar uma imagem destacável de um paralelepípedo ao final do livro e montar a figura como um sólido geométrico, mas a professora decidiu não realizar sob a justificativa de que demandaria muito tempo. 


No recreio, algumas crianças quiseram me capturar para eu brincar de pega-pega novamente, mas eu expliquei que não estava com condições físicas para tal feito. Diante disso, eu fui ameaçado por uma criança: "Vou te dar uma chinelada." Outra criança, também não satisfeita, ficou lá durante o tempo do intervalo e não saiu até o momento em que eu a acompanhei de volta para a sala. (Na verdade, eu fui escoltado por ela até a sala)


Na segunda parte da aula, após o intervalo, a professora retornou para o livro didático, especificamente para uma atividade que falava sobre o Tangram. Regina explicou o que era o Tangram e disse que era possível montar diferentes figuras com suas peças. Depois, leu a tarefa e disse para as crianças pintarem uma imagem do livro (que continha uma figura com diferentes formas geométricas usadas no Tangram) utilizando as cores que essas formas tinham no Tangram da figura do livro. Eu auxiliei algumas crianças no processo, porque elas estavam com dificuldade de reconhecer uma figura quando ela mudava de posição ou de perceber as correspondências de tamanhos entre figuras. Eu fiquei pensando em como poderia ter sido divertido e instrutivo para as crianças experimentarem o Tangram de forma viva, na prática, montando diferentes figuras, realizando sobreposições de formas, para perceber os diferentes tamanhos, e girando as figuras, para mostrar como a alteração da posição não mudava a figura. 


Nesse dia, eu também ajudei a professora a escrever um aviso nas agendas das crianças sobre a mudança no cronograma das disciplinas, visto que na quarta-feira não será mais aula de matemática e arte, e, sim, ciências e arte. A professora disse que fazia tempo que não trabalhava ciências, porque estava focando em Português. Ela também sugeriu que fizéssemos nossas regências voltadas para o trabalho com Língua Portuguesa, porque, segundo ela, as crianças estão precisando. Como eu fiquei um pouco preocupado com o fato de que as crianças não estão tendo muito contato com Ciências e Arte, acredito que seria interessante pensar em um trabalho interdisciplinar com Língua Portuguesa, explorando o letramento e a alfabetização, mas também valorizando esses outros conhecimentos importantes.


Partindo para os meus sentimentos e percepções, a sensação que eu tive foi a de estar vivenciando um dia "comum". Passados aqueles momentos dos primeiros dias, de algumas "descobertas" do ambiente, de alguns "choques" que levam à angústia e de outras boas surpresas que levam ao encantamento, eu sinto que já estou um pouco mais inserido e habituado no cotidiano e na rotina da turma. Acho que, por um lado, essa familiaridade é um passo importante para que a gente se sinta não primariamente como um estranho que vem de fora para fazer uma "intervenção", mas, sim, como alguém que está se tornando, em alguma medida, pertencente àquele espaço, para dar continuidade a esse trabalho pedagógico. Por outro lado, acredito que isso também traz consigo o risco da "falsa" familiaridade que pode deixar o olhar "viciado" ou "acostumado" demais para as coisas, o que representa o perigo de perder um senso de curiosidade, de abertura para enxergar para além do visível, diante daquilo que vemos no cotidiano.


Por fim, também destaco que tenho apreciado bastante o fato de que a abordagem da professora tem ido para além do livro didático, com explicações que engajam mais as crianças na participação e que trazem um caráter mais contextualizado com o cotidiano das crianças – mudanças que podem ser aparentemente simples ou sutis, mas que fazem a diferença na maneira como elas se apropriam desses conhecimentos. E as crianças, por sua vez, continuam demonstrando muitas potencialidades e se desenvolvendo em diferentes aspectos, como a leitura. Em todos esses dias de observação, a turma também se mostrou bem tranquila e participativa. Apesar de alguns conflitos ou de alguma agitação normal para crianças do 1º ano, elas compreendem e respeitam os momentos de ouvir a explicação da professora e buscam participar e prestar atenção nas aulas (com exceção de uma criança ou outra, que às vezes se mostra um pouco mais dispersa). Além disso, muitas também revelam bastante criatividade e interesse por desenho e pintura, o que acredito serem elementos importantes a serem explorados nas regências. 


Parando para pensar nisso, talvez a diferença duradoura do ato educativo não seja feita simplesmente em momentos grandiosos e extraordinários, mas, sim, no cotidiano pedagógico. É naquele trabalho contínuo de exploração e reflexão que, um dia, "de repente", a criança percebe que o "RE", de retângulo, se escreve com o "R" e com o "E"; que o "H" é "silencioso" em muitas palavras; que o "E" em algumas palavras às vezes tem som de "I"; dentre muitas outras "descobertas". Mas aquilo não aconteceu "do nada". Como destaca Morais (2005, p. 41-42), em relação à aprendizagem da língua escrita, "[...] o 'estalo' mencionado por muitos professores não se dá de uma hora para outra, mas é fruto de uma trajetória. É a culminância de um percurso evolutivo [...]." 


Trata-se, em outras palavras, do trabalho diário de preparar o solo, plantar as sementes, regar continuamente e… esperar, esperar e esperar, enquanto ocorre a maravilha do crescimento da vida. Em muitos dias, talvez pareça uma espera muito silenciosa e estática, mas, na realidade, por debaixo do solo, muito movimento está acontecendo, antes de podermos enxergar os frutos visíveis. Coisas extraordinárias podem nascer a partir de dias ordinários.  


Até aqui, acho que um dos principais desafios era a incerteza relacionada à mudança de horário e de cronograma das disciplinas, mas, agora que as coisas estão se estabilizando um pouco mais nesse sentido, penso que vai ser legal começar a esboçar algumas ideias para colocarmos a mão na massa e darmos continuidade a esse trabalho. Que novas possibilidades e caminhos incomuns se abrirão diante de nós e das crianças nos dias comuns pela frente? Que coisas extraordinárias poderemos aprender juntos com esse trabalho em meio a dias ordinários? 



MORAIS, Artur Gomes de. Se a escrita alfabética é um sistema notacional (e não um código), que implicações isto tem para a alfabetização? In: MORAIS, Artur Gomes de; ALBUQUERQUE, Eliana Borges Correia de; LEAL, Telma Ferraz (Orgs.). Alfabetização: apropriação do sistema de escrita alfabética. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 29-46.


______________________. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2012.

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