sexta-feira, 12 de abril de 2024

A MENINA QUE NÃO GOSTAVA DE LETRAS... AGORA GOSTAVA DAS LETRAS? (Helena Rios)

Começo a relatar a minha quarta feira a partir da minha saída do trabalho. Exatamente meio dia e seis minutos o ônibus que me leva para a escola (não tão gentilmente, nesse semana o motorista tinha pressa, só não sei de quê) chega na parada. Subi, passei na catraca e já me surpreendo com a cena de Sabichona sentada em uma das cadeiras altas, de olhos fechados enquanto outra menina, que assumi que fosse sua irmã, a Sabida, aplica um batom rosa em seus lábios. Sorri enquanto andava pela condução e sentei logo atrás das duas. A avó estava na cadeira da frente, com uma sacola enorme nas pernas. Disse um "oi, Sabichona!", fazendo com que ela abrisse os olhos. Logo ela perguntou "você tá indo pra onde?" e eu disse que iria pra escola. Fui surpreendida quando ela respondeu "ah, então é você mesmo, não estou enganada! É a tia, Sabida!". Como imaginei, a menina de muitos acessórios e maquiagem era sua amada irmã de quem ela tanto falava quando sentava ao seu lado para auxiliar na resolução das atividades. A Sabida que tinha muitos lápis de cor, que amava pulseiras e colares, que tinha um estojo de unicórnio. Quando me acomodei, Sabichona ficou virada me observando. Viu minha camisa estampada com gatinhos e me refrescou a memória com a informação de que tinha três gatas. Eu disse que ela já havia me contado mas deixei que ela dissesse o nome novamente. Sabendo que ela ficaria ali me observando e conversando durante toda a viagem, decidi trofar de lugar. Não me levem a mal, eu estava num coletivo em que Sabichona e outras duas crianças do trabalho me conhecem como tia. Entendo o entusiasmo delas de me enxergarem dividindo um ônibus, fora dos meus locais de trabalho e estudo mas, como comentei com o meu namorado, não quero ser tia nesses breves intervalos em que tenho como Helena. Naquele momento a Helena sentiu necessidade de aproveitar uma boa música no seu cantinho e assim fez. Chegando na escola e assumindo meu papel de tia, fui muito bem recebida e acolhida, como sempre, sentindo falta de algumas crianças assim como elas sentem da gente quando faltamos. Logo que entrei, a professora Irma me pediu pra sentar ao lado de Sabichona, dizendo que ela apresenta uma certa dificuldade em fazer atividades sozinha e que estava preocupada com o desempenho dela. Sentei ao lado dela e o sorriso foi enorme. Ela logo me perguntou onde eu morava e eu disse que naquele dia estava saindo do trabalho mas que não morava por aquelas bandas. Ela afirmou dizendo que realmente nunca tinha me visto no ônibus e que morava num bairro por ali. Ela, então, reclamou do tempo osioso daquele começo de tarde, quando a professora ainda organiza a sala e seus materiais para dar início a aula. Disse assim "quero uma tarefa pra fazer!". Confesso que me assustei já que Sabichona tinha me dito uma certa vez que detestava brincadeiras com palavras pois não sabia ler. Queria entender de onde surgiu esse gosto tão repentino pelas atividades que possuem letras de sobra. Dito e feito, professora Irma apareceu com o caderno de Sabichona e nele havia uma atividade de completar as palavras com as letras que faltavam. Irma me disse como eu deveria ajudar e assim fiz. Dizia a palavra que estava escrita, ia em cada família silábica, repetia bastante aquele fonema numa tentativa dela identificar com letras formavam aquele som. Percebi que ela ainda não compreende que a escrita é esse registro do que falamos, já que várias vezes a vi olhando pro alfabeto na parede a sua frente e ia chutando as letras que sabia. Perguntei pra ela se ela sabia quais eram as vogais e mais uma vez a vi chutando aleatoriamente. Senti necessidade de mostrar pra ela as vogais já que naquela atividade a maior parte das letras que faltavam nas palavras eram elas. Ficava esperando sua resposta e quando não vinha, juntava a consoante com cada vogal que havia escrito no seu caderno e perguntava qual o som era mais parecido com o que procurávamos. Fiquei tentando buscar referências das aulas de alfabetização, de ensino de língua portuguesa para facilitar o processo de aprendizagem para Sabichona mas percebi que preciso retornar com essas leituras, fazem muita falta quando nos deparamos com casos como o dela. Porém, Sabichona se saiu muito bem, apesar de suas dificuldades. Em alguns momentos a via desmotivada, dizendo que não sabia, que alguns fonemas não existiam já que seus chutes estavam incorretos. Percebi uma memorização de algumas palavras simples, e a elogiei pelo acerto. Isso a deixava feliz e acredito que essa validação é o que faz ela simpatizar com as atividades. Fizemos mais uma tarefa do livro juntas e ela pediu para copiar um texto que estava em letra cursiva no livro para o seu caderno. A turma estava se apropriando dessa forma de escrita e a professora Irma, inclusive, pediu para que alguns lessem. Pediu para uma garotinha ler e ela se negou. Pediu para mais um aluno ler mas esse também não quis. Outras crianças se manifestaram e leram com uma certa dificuldade. Eu li com Sabichona, colocando o dedo em cada palavra que lia para que soubesse que aquela formação de letras formava aquele som. Pedindo para que as crianças realizassem uma questão, professora Irma foi até as duas crianças que não quiseram participar da leitura para uma conversa individual. Foi a primeira vez que a vi fazendo aquilo. Tinha muito carinho e preocupação com as duas crianças, perguntando se tinha acontecido algo em casa, puxando alguns outros assuntos e se certificando de que estavam bem. Essa escuta e vínculo é importante, apesar de difícil numa turma numerosa. Enquanto isso, Sabichona copiava a letra cursiva em seu caderno e pude observar que nele haviam outras coisas escritas. Estavam em inglês. Fiquei sem entender e perguntei. Ela disse que via no celular e copiava. Pareciam títulos de vídeo no Youtube. E todos os vídeos eram do Kirby, aquele jogo que leva o nome do boneco rosado e fofinho da Nintendo. Percebi nela um desejo muito grande de escrever suas próprias coisas, mas enquanto não sabia, apenas copiava. E era assim que ela me comunicava e me dizia que estava criando uma intimidade com as letras. O recreio foi aquela correria de sempre e eles retornaram pra sala bem agitados. Mais uma vez, Desenhista me pede para ficar parada no meu cantinho enquanto ele me observa e rabisca sua folha. Toda a nossa comunicação até hoje foi através de desenhos. Ele sempre me desenha, ou ele sempre me mostra um desenho que fez. Se estimulado devidamente, Desenhista pode realmente se tornar um desenhista já que gosta tanto. Pedindo para que um grupo de crianças se retire da sala para jogar uns jogos educativos comigo e Isys, Desenhista implorou para ficar. Queria terminar o seu desenho e me entregar. Mas foi um dos "escolhidos". As crianças que não foram chamadas ficaram chateadas por não terem sido escolhidas. "Todo mundo foi escolhido! Não fiquem tristes!", disse professora Irma garantindo que próxima semana as crianças que ficaram na sala iriam brincar lá fora. No pátio, levamos o dominó de palavras tirado do livro didático das crianças, um Cruza-letras e um Tangram. As crianças se divertiam bastanta formando palavras, compentindo no dominó e quebrando a cabeça no Tangram. Foi legal observar o aprendizado se concretizando coletivamente e através de um jogo. Pensei que seria proveitoso para as crianças que estavm dentro da sala mas esperancei de que elas teriam sua chance na semana seguinte. Juntando os grupos no fim da tarde, eles brincaram um pouco no pátio e logo em seguida já era hora de ir embora. Demos nosso até logo para a professora Irma e eu pedi para que ela comunicasse às crianças da nossa ausência. Saí ansiando pelo nosso reencontro e pensando muito na Sabichona. Espero que até lá ela não perca o interesse pelas letras novamente e que sua relação seja de amizade sincera e duradoura.

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