Neste texto, uso a letra "i" como recurso de linguagem neutra.
Sou meio obcecado com horários. Não vou entrar nos detalhes psicanalíticos disso, mas se uma pessoa marca comigo às 8h, eu conto que ela estará presente nesse horário. Já tive muitas frustrações com isso e acabei desenvolvendo uma maneira de esperar sem esperar: apareço no horário, mas já preparado para fazer alguma outra coisa enquanto as outras pessoas não chegam.
Quando comecei a ensinar em escola, em 1993, não tive problemas em relação ao horário de cada aula. Quando eu chegava na sala, is alunis já estavam lá, sentadinhos. Se alguém chegasse atrasado, era uma situação que a coordenação tinha que resolver, não eu. O meu problema era encontrar um tempo para realizar com is alunis aquilo que eu gostaria já que, como contei no didaticx anterior, eu tinha de seguir um livro didático e dar conteúdo suficiente para que mis alunis fizessem uma prova bimestral elaborada por outri professori. A solução que encontrei nos dois anos que ensinei em escola foi acelerar o trabalho com o conteúdo do livro didático para que, a cada bimestre, me sobrasse uma aula em que eu fizesse algo mais interessante com is alunis.
Já o espaço da sala de aula era um tanto mais complicado. Eu tinha sessenta alunis em cada turma e o tamanho da sala era apenas suficiente para cabê-lis. Não havia folga para reordenar carteiras em outro formato. Quando muito, eu fazia alguma atividade em duplas.
Em 1999, quando passei a ensinar em universidades, a autonomia era maior. Mesmo tendo que respeitar a ementa das disciplinas, eu tinha liberdade de definir o conteúdo e realizava minhas próprias avaliações. Toda aula era uma oportunidade de fazer o que eu quisesse. O espaço também era mais amplo. Dava pra realizar atividades em círculo ou em grupos com mais facilidade. Havia até a possibilidade de eu dar aulas fora da sala de aula, pelos outros espaços da universidade, embora eu não fizesse isso com frequência.
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Tudo mudou em 2014 quando, após alguns anos sem dar aulas, peguei algumas turmas de Didática em horário noturno. O horário das aulas deveria ser de 18h às 22h. Ou até 21h40, considerando uma hora-aula de 50 minutos, com um intervalo de 20 minutos após as duas primeiras aulas. Não levou muito tempo para eu descobrir que esse horário não funcionava. Is alunis, a maioria trabalhadores, terminava seu expediente às 18h, então só chegava à universidade lá pelas 18h30 ou 19h. E muitos moravam bem distante da universidade, alguns até em outras cidades, precisando pegar um último ônibus não muito tarde. Sem contar o cansaço do dia.
Acabei optando por fazer a aula noturna das 18h30 às 21h (às vezes 21h15) sem intervalo. Começo pontualmente às 18h30, desde que tenha pelo menos duas pessoas. A primeira parte da aula, que já contei para vocês, focada nos sentimentos, é também um tempo para que as demais pessoas possam chegar. Quando começo a principal atividade da aula, por volta de 19h, já temos bastante gente, embora algumas vezes a sala só fique cheia mesmo lá pelas 19h30.
Em relação ao semestre como um todo, faço algo parecido. As primeiras quatro semanas de aula são mais tranquilas para dar tempo das pessoas fazerem ajuste de matrícula. Depois o ritmo se acelera e volta a ralentar no último mês para que a disciplina não entre para a conta do estresse de final de semestre.
Durante um certo tempo de minha vida como professor, achei que is alunis tinham obrigação de vir a todas as aulas, chegar no início e ficar até o final. Essa é a única coisa de que sinto saudades quando penso no tempo em que dava aulas em escolas. Mas a realidade da educação superior noturna se impôs à minha obsessão por horários. Atualmente, a minha expectativa é que is alunis cheguem atrasadis e faltem todas as aulas que têm direito: quatro por semestre.
É uma expectativa sem mágoa, baseada na empatia pela situação dis alunis. Um dos principais recursos que criei para lidar com essa situação foi uma planilha para cada turma, aquela planilha de que também falei no didaticx passado: https://docs.google.com/spreadsheets/d/1MaTY_rbPNX42mLaJRzhDk2O_RNt73Mk9auRXdNI9Y40/edit?usp=sharing. Se quiser dar uma olhada, apenas ocultei as colunas em que aparecem os nomes dis alunis para preservar a privacidade delis.
Na planilha, tenho uma aba para cada aula, indicando o que foi feito naquele dia num formato de plano de aula: objetivo, conteúdo, metodologia e avaliação. Assim, i aluni que falta ou chega atrasado tem sempre uma forma de se informar a respeito do que acontece em sala de aula.
Outro recurso foi a ficha de observação, de que falei no Didaticx 04, e que você pode encontrar neste link: https://drive.google.com/file/d/1KWGWV7FZI2CYQW3Bs3s2v18VScdEIqye/view?usp=sharing. Uso a ficha na parte final de cada aula quando todis is alunis já estão presentes. Então ela é uma forma de garantir que todas as pessoas que vieram à aula, independente da hora em que chegaram, terão a oportunidade de estudar o assunto. E mesmo que i aluni falte quatro aulas durante o semestre, ele preencherá e refletirá sobre o conteúdo durante muitas e muitas aulas.
A planilha e a ficha de observação são os dois maiores exemplos dessa minha adaptação a essa realidade, mas o tempo todo estou com essis alunis que faltam e chegam atrasadis em mente. É para essas pessoas reais, concretas, que planejo minhas aulas, e não para o estudante profissional que fui em meus tempos de faculdade.
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Essa questão do tempo tem implicações também sobre o espaço. Como muitas pessoas chegam atrasadas, propor atividades fora da sala de aula pode fazer com que alguém chegue em sala, não encontre ninguém e ache que não está tendo aula. Então, quando faço alguma atividade externa, geralmente é perto da sala para que is alunis possam ver com facilidade. E tem também a questão do tempo de deslocamento para sair da sala e voltar para a sala, que é crítica considerando a diminuição que já foi feita no tempo de aula.
Existe uma questão importante na interseção entre tempo e espaço que é a concentração. Leva um tempo para is alunis se concentrarem na aula. Com o trabalho sobre os sentimentos, tenho obtido sucesso na concentração inicial. Então evito interrupções como o intervalo ou deslocamentos para outro espaço, que pediriam um esforço de reconcentração.
As salas da universidade geralmente são espaçosas e me permitem fazer um grande círculo, um trabalho em pequenos grupos e até dançar. Mas de vez em quando me aparece uma sala à moda dos tempos de colégio. Então eu preciso trocar a academia intelectual pela academia braçal e, antes da aula, tirar carteiras da sala. Eu tinha uma turma em que precisava tirar catorze carteiras toda aula, e trazê-las de volta ao final. Tudo isso para ter espaço para is alunis circularem em sala de aula.
Mesmo que não precise tirar carteiras de sala, gosto de chegar em sala de aula com 15 minutos de antecedência para reorganizar o espaço, preparando-o para as atividades que planejei para aquele dia. E, se nenhuma pessoa chegou ainda, ou se as pessoas são caladas como eu, geralmente sento, fecho os olhos e relaxo um pouco antes de começar a animação da aula.
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Às vezes, fico pensando como seria se minhas condições de trabalho fossem outras: salas e outros espaços ainda mais amplos e equipados, natureza em vez de estacionamentos, máximo de 15 estudantes por professor, estudantes sem disciplinas obrigatórias, podendo escolher o que estudar, disciplinas de tempos diferentes (uma semana, um mês, dois meses, um semestre, um ano)... São meus delírios de uma "universidade livre". Talvez eu conte isso pra você em mais detalhes num outro momento.
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E você? Como organiza os tempos e os espaços de suas aulas?
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Semana que vem, será nosso último didaticx, nossa última "aula". Compartilharei duas atividades de que gosto muito, uma delas o "Prêmio dos melhores do semestre".
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